O jazz arrasador dos Sons of Kemet e o funaná-festa dos Bulimundo no FMM

Fim-de-semana de encerramento do 20º Festival Músicas do Mundo, em Sines, com a festa a ficar por conta de Bulimundo e Baiana System, a sensualidade nas mãos de Yasmine Hamdan e Sara Tavares e o jazz mutante e inspirador assegurado por Sons of Kemet e Yazz Ahmed.

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Sons of Kemet Mário Pires/ FMM
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Sons of Kemet Mário Pires/ FMM
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Kimmo Pohjonen Mário Pires/ FMM
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Sara Tavares Mário Pires/ FMM
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Yasmine Hamdan Mário Pires/ FMM
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Yasmine Hamdan Mário Pires/ FMM

A lua desponta por detrás das ameias do Castelo de Sines, mas carrega uma mancha que lhe suja a imagem e, quando subir mais um pouco, há-de ocupar o céu parcialmente encoberta, roubada da sua plenitude. Nesta noite de sexta-feira os olhos desviam-se com frequência do palco na direcção dessoutro espectáculo que concorre, por momentos, com a actuação do acordeonista finlandês Kimmo Pohjonen, acompanhado pelas duas filhas no projecto Skin. Mas, para lá dessa disputa, o eclipse da lua parece fornecer uma imagem bastante adequada daquilo que vemos acontecer em palco. O músico finlandês, que nos habituámos a ver nas suas muitas visitas anteriores a Portugal (só no Festival Músicas do Mundo foram duas as ocasiões) como se combatesse com o acordeão em palco e este fosse um objecto selvagem que Kimmo tentava domar com obstinação, parece ele próprio agora domesticado.

As frequentes diatribes lancinantes em que Kimmo embarcava, com as quais agarrava o público pelos colarinhos e o encostava à parede, e que lhe valeram descrições como o “punk do acordeão”, surgem agora a espaços, como se Pohjonen, tal como a lua, não estivesse presente na totalidade. Percebe-se que é outra a natureza do projecto Skin, que partilha com as filhas, mais sintonizado com uma exploração melódica que acompanha as vozes etéreas de Inka e Saana. Mas é demasiado tentador olhar para Kimmo investido no papel de pai, inibido pela presença das suas crias, não querendo deixá-las desconfortáveis em público ao soltar o lado selvático da sua música. Mesmo com a ocasional irrupção (que recupera esse espírito) e uma polka tradicional como espelho da transmissão familiar (lembrando as polkas que Kimmo tocava em criança com o pai), pareceu sempre que o músico não quis ofuscar as virtudes das suas filhas (na guitarra/electrónica e na bateria), demasiado pai consciencioso para ser o músico total que conhecemos.

Toda essa contenção foi para as malvas logo em seguida. Os Sons of Kemet de Shabaka Hutchings não nasceram para se atirar ao mundo com cuidados. Depois de visitar o FMM com os The Comet Is Coming, o saxofonista britânico regressou com o projecto que criou para não deixar cair em esquecimento a música caribenha com que cresceu. E tudo é pulsação, sangue e nervo nestes Sons of Kemet: a propulsão rítmica assegurada por duas baterias tocadas em simultâneo não dá tréguas e, não raras vezes, ameaça e chega mesmo a tomar conta do espectáculo, servindo-se do balanço percussivo das Caraíbas, mas “molhando o pão” também na força descontrolada e directa do rock mais sujo e do punk.

A isto junta-se uma tuba que oferece tanto swing quanto tensão à música. As linhas de Theon Cross são uma endiabrada adulteração dos sons de Nova Orleães e garantem a constante ameaça de que há algo prestes a explodir na música dos Sons of Kemet. Ora quando Shabaka estende sobre o restante quarteto um saxofone inquieto, vigoroso e de uma enorme amplitude melódica, ouvimo-lo como se caminhasse sobre as brasas de Fela Kuti e Sun Ra, discursando sobre uma música escaldante e altamente inflamável naquele que foi, seguramente, um dos concertos maiores do 20º Festival Músicas do Mundo em Sines.

Dos lados do jazz veio ainda uma outra extraordinária surpresa na sexta-feira – dia que acolheu ainda uns Cordel do Fogo Encantado pouco encantadores, demasiado prog-MPB e com a poeira do sertão talvez a toldar-lhes algum discernimento para elevar a ambição poética a um resultado musical condizente; e umas Maravillas do Mali que maravilharam com belíssimos arranjos de cordas dos mais clássicos sons cubanos, mas em que esta aparente liga de amizade Cuba-Mali se esqueceu de informar quase todos os malianos do local de encontro (felizmente Mory Kanté recebeu as coordenadas).

O jazz chegou-nos então, também, pela trompete de Yazz Ahmed, música nascida no Bahrein e formada em Londres, cuja manipulação do som do instrumento encontrou sempre novas formas de nos envolver num som modorrento, como uma língua de calor que cercava cada tema e atirava cada segundo para um lugar de suave delírio às portas do deserto. Como que a fazer a súmula perfeita, tocou um tema inspirado pela realizadora saudita Haifaa al-Mansour e uma versão dos Radiohead. Belíssimo concerto.

Sensualidade e festa

“Quando Deus bate palmas, a gente dança”. São estas as palavras com que Sara Tavares se refere à doença que motivou a sua longa ausência dos palcos e dos discos. E é este o mote para a magnífica actuação que leva a maior multidão de sempre no FMM ao concerto de fim de tarde no Castelo (isto num ano em que as enchentes não atingiram os mesmos níveis de edições anteriores), no derradeiro dia do festival. É o mote para a renovação que a cantora operou na sua música, ao brincar com sonoridades mais electrónicas – a ideia de que perante a ameaça da quebra se responde com vitalidade redobrada. Tudo é simples nas canções de Sara Tavares: o irresistível cardápio melódico, a banda extraordinária que lhe acrescenta riqueza sem complicar e a sensualidade meio velada, dengosa, feita daquele torpor encalorado que convida ao toque.

Uma sensualidade bem diferente daquela que a libanesa Yasmine Hamdan leva para palco a abrir a noite de sábado do Castelo. Com Yasmine, não há canção que não seja construída sob essa névoa de mistério e sedução, de acordo com uma linguagem por onde serpenteiam o tempo todo melodias arábicas que são todo um programa de sugestão física. Quer seja o rock de matriz blues ou de variante psicadélica, quer sejam as tangentes ao trip-hop ou música ambiental, o reportório da cantora emigrada em Paris vive sempre dessa relação ambígua com a assertividade: nunca adopta um género de forma declarada, repete as linhas vocais com a qualidade de refrães pop, mas fá-lo com o efeito hipnótico da música árabe. E esse, na verdade, é o seu maior e muito eficaz encanto.

Antecipando um pouco aquilo que viria mais tarde, o final do concerto de Sara Tavares far-se-ia com uma passagem pelo funaná e pelos Bulimundo. Os próprios Bulimundo chegavam horas depois, quase a encerrar a programação deste 20º FMM, com a sua colecção impagável de funanás que equivalem a uma festa permanente. E isso é tanto mais extraordinário quanto os Bulimundo possam ser sérios candidatos a banda mais estática do planeta. Os seus movimentos em palco são mínimos, tornando quase impossível acreditar que toda a ginga que ouvimos seja proveniente daqueles homens impávidos, cuja missão colectiva atinge um nível de verdade máxima sempre que Zeca di nha Reinalda pega no microfone. É daquelas vozes que parece sobrepor-se a tudo à volta, quase nos fazendo jurar que a única razão para haver instrumentos no grupo é para que a sua voz possa ser levada em ombros.

Para quem desesperava por música que pudesse levar a multidão a um estado de euforia colectiva, nada mais acertado do que fechar o FMM no Castelo de Sines (haveria ainda mais música na praia) com os brasileiros Baiana System. Que é como quem diz: uma descarga sonora techno-rock-hip-hop-samba-dub, tudo junto para fazer tremer o chão de qualquer sítio por onde passem. Por entre gritos de apoio a Lula e de condenação de Temer, com os Baiana não há lugar a subtilezas e é pela acutilância do discurso e das batidas carregadas que se fazem ouvir (e bem).

Numa noite que foi sempre de festa, foi bonito ver o zimbabueano Oliver Mtukudzi mostrar o quanto as suas belas canções se desenvolvem e incluem coreografias, mas nunca estão preparadas para terminar. É uma outra forma de verdade na música – em que os temas são colocados em marcha e se tocam enquanto houver alguma coisa a dizer naquele pequeno espaço musical de uma canção. Quando Mtukudzi diz que podiam “passar a vida inteira numa só canção”, não é exagero. E é, ao mesmo tempo, a mais justa imagem daquilo em que se tornou o FMM em 20 edições: o final chega sempre como uma surpresa e, mais do que isso, dá vontade de nunca se sair verdadeiramente de lá.

O PÚBLICO está em Sines a convite do FMM.

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