Porque é que vocês nos odeiam mais do que o necessário? (1)

A história pessoal que vos conto aqui é, muito simplesmente, o indicador da traição da esquerda europeia a Israel.

Em Maio de 1967, o Presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, deslocou enormes contingentes do seu exército para o Sinai e Gaza, violando o acordo de cessar-fogo com Israel. Bloqueou os estreitos do mar Vermelho por forma a evitar que embarcações e mercadorias chegassem ao porto israelita de Eilat. Resumidamente, cercou um Israel pequeno e ainda frágil. Nas ruas do Cairo, bem como nas de Damasco, muitos milhões marchavam e gritavam em árabe “morte aos judeus”, prometendo chacinar-nos e atirar-nos ao Mediterrâneo.

Em França, o meu falecido pai sentia-se bem acolhido. Após terminar o ensino secundário em Telavive, viveu em Paris e estudou na Sorbonne, tendo mesmo sido jornalista no jornal de esquerda La Marianne. Esteve lá até ao último momento, o que significa até ao momento em que os nazis atingiram o limiar de Paris. Sendo um palestiniano — sim, o termo era válido para qualquer pessoa detentora de um passaporte de Eretz Israel/Palestina, emitido pelo Mandato Britânico —, não impediram o seu regresso à pátria, ao contrário do que fizeram, infelizmente, a tantos milhões de judeus que foram deixados à morte. A sua vida foi salva no último momento. Durante muitos anos crítico de arte e director do Museu de Arte de Telavive, o meu pai cultivou as relações com França, recebendo todas as condecorações possíveis de vários presidentes pelo seu contributo como promotor da cultura francófona. Os seus colegas e amigos franceses lançaram sobre nós, durante esse período de Maio de 67, muitas expressões de solidariedade. Temiam pela nossa vida, perguntavam se tínhamos um bom abrigo (que não tínhamos, tínhamos de escavar uma vala no quintal) e muitos propuseram ao meu pai pegar na família e regressar imediatamente a França. O meu pai agradeceu, mas recusou fugir do seu país em perigo.

Em Junho de 67, após um mês de cerco, de sufoco económico e de ameaças de extermínio, Israel lançou um ataque preventivo numa operação brilhante que arrasou no terreno a quase totalidade da força aérea egípcia e, no espaço de seis dias, alcançou a vitória sobre os exércitos egípcio, sírio e jordano, reforçados por forças iraquianas e marroquinas. Na sua grande maioria, o mundo felicitou o pequeno Estado de Israel. Já os amigos franceses do meu pai, gente do meio cultural e boémio, todos eles liberais do que se usava chamar a “nouvelle gauche”, os mesmos que nos inundaram de empatia às vésperas da guerra, tornaram-se reservadamente frios. E note-se que, até 1967, não existiam colonatos para lá das fronteiras da linha verde. Termos como “ocupação” e “colonatos” não faziam ainda parte da realidade e, portanto, do jargão político.

Quando Israel declarou estar disposto a trocar território por uma paz verdadeira, a resposta do mundo árabe traduziu-se em três rotundos “nãos” expressos em Cartum na cimeira da Liga Árabe: ao reconhecimento de Israel, às negociações com Israel e à paz com Israel.

O nosso então primeiro-ministro, Levi Eshkol, pediu ao meu pai para viajar para Paris e perguntar aos seus amigos de esquerda as razões da sua mudança em relação a nós. Alguns disseram-lhe que não podíamos permanecer e controlar a Cidade Velha de Jerusalém, detentora de tantos lugares sagrados para eles, cristãos. O meu pai contestava: “Se Jerusalém tem todos estes locais sagrados, é precisamente devido à sua matriz judaica. E não se esqueçam que Jesus Cristo era judeu.” “Quando a Jordânia muçulmana ocupou esses mesmos locais durante os últimos 20 anos (1948 a 1967), sentiram o mesmo desconforto?”, perguntou o meu pai. “Ou é mais difícil para vocês digerirem uma ordem judaica sobre estes locais, embora seja claro que garantiremos livre acesso e total liberdade religiosa a todos os crentes de todas as religiões, mais do que quaisquer outros?”

“E verbalizaram a vossa revolta durante todos os anos em que foi proibido aos judeus acederem aos seus próprios locais sagrados na Cidade Santa?”

“Manifestaram-se contra a destruição do bairro judeu na Cidade Velha, incluindo as suas sinagogas? Ou contra terem usado as lápides judaicas do cemitério do Monte das Oliveiras no pavimento das estradas das casernas militares jordanas?”

“E como explicam a vossa solidariedade connosco às vésperas da guerra, quando um pequeno Israel estava sob cerco e os seus habitantes sob ameaça de morte, e agora encontro-vos reservados, se não mesmo frios, ao invés de mostrarem coerência, expressando alegria pela nossa vitória surpreendente?”

Amigável conquanto intensa foi a discussão do meu pai com os seus amigos de esquerda. A certo ponto confessaram que um judeu perseguido e acossado despertava neles a necessidade de protegê-lo e apoiá-lo. Já um herói militar, um judeu vitorioso, era algo mais difícil de assimilar. Criava, explicaram, uma dissonância cognitiva. O judeu como parte integrante do que era percebido como civilização europeia (ainda que um terço do nosso povo tenha perecido em solo europeu), que venceu os árabes (estes mesmos representantes de nações que tinham acabado de se livrar do colonialismo europeu), isso, sim, era ainda mais doloroso para eles como esquerdistas imbuídos de uma ética terceiro-mundista anticolonialista.

A história pessoal que vos conto aqui é, muito simplesmente, o indicador da traição da esquerda europeia a Israel. Uma traição que gozou do apoio ideológico e financeiro da máquina de propaganda bem lubrificada e anti-semita da URSS, por um lado, e dos produtores de petróleo árabes, por outro. Os primeiros, quando entenderam que os governos socialistas de Israel se viam como parte das famílias democráticas ocidentais, e os segundos pagaram desta forma o seu lip service à causa palestiniana.

Ora, a URSS já foi desmantelada e a maior parte dos países árabes sunitas, incluindo os produtores de petróleo, já não vêem um inimigo em Israel. O Irão incomoda-os muito mais. Contudo, o “anti-israelismo” tornou-se um critério necessário, se alguém na Europa quiser definir-se como parte de uma esquerda iluminada ou liberal e tal inclui, naturalmente, os media (e peço desculpa, a priori, a todos aqueles a quem esta generalização não faz justiça). Existem uns poucos corajosos que nadam contra a corrente, rompendo o politicamente correcto distorcido, apenas por uma questão da busca da verdade. E a verdade é que Israel é uma democracia pluralista, seguramente imperfeita, mas que com todas as suas falhas e fraquezas representa os mesmos valores pelos quais qualquer progressista europeu se bateria. E este Israel que mantém um regime democrático desde o primeiro momento da sua independência enquanto luta constantemente pela sua existência e sobrevivência contra o terrorismo (da AP, Hamas e do Hezbollah), contra ameaças de extermínio pelo Irão, contra a educação para o ódio da Autoridade Palestiniana, esperaria mais empatia por parte das democracias europeias e da UE e uma cobertura mais justa por parte dos media. Pelo contrário, o país enfrenta demasiadas vezes uma abordagem hostil quando lida com a extrema-esquerda, encontrando um ódio visceral que em nada é melhor do que o anti-semitismo da extrema-direita. Desta feita, a esquerda europeia, bem como parte do establishment político europeu contribuem há muito para o processo de enfraquecimento da esquerda israelita. O Israel que sente que a sua sobrevivência é ameaçada e que uma parte significativa da opinião pública europeia e suas instituições políticas o traíram tende a votar em quem garante firmeza e protecção à sua existência. E a direita é percebida como tal. Os media, ainda que não na sua totalidade, detêm aqui a sua quota-parte de responsabilidade. Muitas vezes são parciais, selectivos, superficiais, descontextualizados e, por vezes, até mentirosos.

Na segunda parte deste artigo, no próximo sábado, vou identificar alguns exemplos aplicáveis à realidade portuguesa. Embaixador de Israel em Portugal

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