Histórias com manteiga e pó de talco para redescobrir o rio Ul

O Parque Urbano do Rio Ul lança este sábado um programa de visitas guiadas a diferentes facetas do seu património, sob orientação de profissionais como biólogos e arquitectos paisagistas. As histórias a contar envolvem árvores, animais, pão e chapéus.

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O concelho de São João da Madeira tem fama de ser altamente industrializado e de concentrar diversas actividades económicas naquele que é o município mais pequeno do país, com menos de oito quilómetros quadrados de área. Não é de estranhar, portanto, que se possa estacionar o carro numa das principais avenidas da cidade, mesmo ao lado de lojas, restaurantes e hotéis, e que em apenas alguns passos se chegue a uma das entradas do Parque Urbano do Rio Ul.

Nesse extremo, a paisagem natural não será de total deslumbramento, mas a proximidade das águas aos locais de trabalho na vizinhança já justifica uma considerável população de animais não-selvagens, porque quem ali passa deu-se ao hábito de alimentar patos e cágados que agora são fiéis às suas casas flutuantes. Cenário mais impressionante só se descobre umas centenas de metros depois, rumo a Norte, no prado de intenso verde onde a copa das árvores esconde e silencia quaisquer fábricas, habitações e estradas em redor, criando em plena civilização um oásis natural onde é instintiva a vontade de descalçar os pés sobre a relva, correr entre as árvores e repousar ao comprido junto à sombra.

Nada disto, contudo, é novo. O parque idealizado pelo arquitecto paisagista Sidónio Pardal, também ele de São João da Madeira, já há muitos anos veio transformar uma paisagem que só terá tido particular encanto até meados do século XX, enquanto, ainda intocada pelos efeitos da industrialização, as águas do seu rio se apresentavam em tal estado de pureza que aí se podiam torcer os feltros de chapéus ou até lavar tripas de porco para culinária caseira. “Quem é da minha geração não tem grandes recordações junto ao rio, porque quando eu era criança já ele era só uma zona de mata, sem interesse especial”, conta José Nuno Vieira, vice-presidente na Câmara de São João da Madeira e aí responsável pelo pelouro do Ambiente. “Os mais velhos é que contavam histórias sobre o rio, porque antes havia aqui moinhos para fazer pão e as águas eram tão limpas que estimularam o aparecimento de algumas indústrias”.

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A engenheira ambiental Vera Neves explica que foi do testemunho de seniores do concelho que resultou, aliás, grande parte do conteúdo histórico a apresentar nas visitas guiadas e nas outras propostas lúdico-pedagógicas do recente programa municipal “Quantos parques há no Parque do Rio Ul?”. Combinando-se essa memória colectiva com dados sobre o património edificado junto ao rio, nomeadamente um antigo moinho de cereais, uma casa com eira e outra que até 1978 serviu de central a uma das primeiras redes públicas de abastecimento de água no país, ao projecto só faltava depois acrescentar-se-lhe natureza. Nos anos 2000 o município adquiriu então uma faixa de dois quilómetros de extensão ao longo do rio e decidiu recuperá-la. Domou-lhe as margens, semeou-lhe plantas e árvores, e em 2008 deu-a a conhecer num vale novo, cujo cenário aprumado foi entretanto melhorando ao ritmo do crescimento da sua flora. O terreno de 17 hectares exibe agora 2346 árvores de 46 espécies nativas e exóticas, arbustos e herbáceas de 158 espécies e uma fauna selvagem com 57 espécies de peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. “Como é possível tanta biodiversidade, se a água de que se alimentam parece tão suja?”, questionam muitas vezes professores e alunos. Porque se trata de ilusão óptica: como o rio tem pouca profundidade, vê-se demasiado bem o tom escuro do seu leito de terra. Só maior quantidade de água lhe permitiria reflectir o azul do céu.

Se estudantes, famílias em lazer, apreciadores de esplanadas, runners, ciclistas e namorados com spot fixo já há muito são frequentadores habituais da orla do Ul, a novidade é o lançamento de um programa de actividades próprio para dinamização desse espaço e em cuja oferta se destacam visitas orientadas para divulgar o seu património edificado e natural, valorizar a sua história e incentivar no público maior sensibilidade ambiental e ligação afectiva ao local. “Muita gente não sabe que foi pela qualidade destas águas que São João da Madeira começou a fazer chapéus de lã e teve pastagens tão boas que levaram ao aparecimento de uma importante produção local de manteiga”, conta Vera Neves. “Também não sabem que a água corria com força suficiente para moer cereais e até a casca de carvalho usada nas tinturarias, e que às vezes cá vemos raposas às sete da manhã, que há aqui muitas subespécies de morcegos e que também temos guarda-rios — que são os pássaros que mais dizem sobre a qualidade ambiental de um parque por só viverem junto a águas limpas.”

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Escolas, grupos organizados ou participantes individuais

No último fim-de-semana de cada mês, ao sábado à tarde e domingo de manhã, as visitas vão realizar-se de acordo com um tema escolhido pela Câmara; nos restantes dias, o percurso será adaptado aos interesses dos participantes, que poderão escolher entre biodiversidade, paisagismo, património arbóreo, flora herbácea, répteis e anfíbios, etc.. Para isso, a autarquia constituiu uma bolsa de guias-intérpretes que inclui desde biólogos e geólogos até professores de História, sendo que todos receberam formação específica para melhor darem a conhecer o parque numa caminhada através das suas árvores, pontes, percursos pedestres, açudes e represas.

No caso da visita com a Fugas, a guia foi a arquitecta paisagista Marta Seabra, que nos contou como Sidónio Pardal fez o reperfilamento do curso original do rio para lhe garantir maior caudal e “enquadramento cénico”, desenhou encostas arbustivas para esconder e insonorizar estradas, e valorizou charcas enquanto “solução técnica que ajuda a reter águas pluviais e aumenta a fertilidade do solo”. Também nos apontou os locais onde melhor se detecta uma rã-verde, um tritão-de-ventre-laranja, uma lagartixa de Bocage e uma enguia-europeia em risco de extinção. Depois ajudou-nos ainda a identificar pelo seu azul vivo um guarda-rios em pose majestática junto à água e explicou-nos como todas as árvores do parque foram georreferenciadas para inclusão num mapa que até revela quem plantou os exemplares mais jovens em sucessivas acções de florestação.

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Na hora do piquenique, quando as toalhas pediam para ser lançadas sobre a relva e apetecia melancia fresca sob a copa de faias, bétulas, amieiros e ulmeiros, chegou ao prado Marta Pinto, que é a mentora do projecto “100.000 Árvores na Área Metropolitana do Porto” e vem acompanhando a evolução do parque do Ul como investigadora da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto. Ensina-nos a identificar árvores pelo seu tipo de folha e tronco, revela-nos efeitos curativos de arbustos e plantas, e cala uns quantos adultos quando pega numa das bolinhas que crescem nos carvalhos e explica que de nada adianta plantá-la na terra. “Isto é um bugalho, que é a excrescência com que a árvore combate a acção de determinados insectos, numa espécie de reacção alérgica. Não é um fruto como a bolota, não tem sementes — só tem mesmo um bichinho lá dentro.” Feitos crianças da cidade, pedimos para ver. A esfera parte-se e, qual bicho da gruta, o seu interior revela a linha estreita de um caminho desbastado pelo insecto aí preso. “Antes de haver pó de talco, era isto que os antigos usavam”, conta a bióloga. “Desfaziam este interior com um almofariz e depois aplicavam o pó nos bebés, para evitar as assaduras. Era fácil, natural e tinha exactamente o mesmo efeito do pó que compramos agora nos supermercados.”

A cara de espanto com que a ouvimos repete-se mais vezes ao longo do passeio. Inundamos bióloga, engenheira e arquitecta com perguntas, vamos cheirando plantas ao caminho e só não colhemos cogumelos gigantes porque queremos ficar vivos mais tempo. Se trazemos no bolso umas folhas de sabugueiro para casa é para testar se a tradição está certa quando diz que essa “rosa-de-bem-fazer” cura reumatismo, artrite, tosses e retenção de líquidos. Afasta bruxas também? Vera Neves nota-nos mais uma expressão de surpresa e lá meneia a cabeça com o sorriso sobranceiro de quem sabe mais que nós: “Não vos disse que havia aqui muito para aprender?”