A Europa em calções

Há uma maneira de fazer política como cidadão comum que se perdeu, e que urge recuperar tanto quanto vale a pena recuperar a memória do homem que nos ofereceu a Europa, de calções.

Foi há 44 anos por estes dias que Portugal mudou a agulha da sua história. A 27 de julho de 1974, um sábado, o presidente Spínola fez uma comunicação ao país na qual anunciou o fim da Guerra Colonial. Ao mesmo tempo, um número especial do Diário do Governo anunciava que o Conselho de Estado se reunira e que reconhecera três princípios fundacionais da nova democracia portuguesa. O primeiro, que a guerra em África não poderia ter solução militar, mas apenas política. O segundo, que Portugal reconhecia o direito à autodeterminação dos povos — como ficaria consagrado, depois, na Constituição da República Portuguesa. E o terceiro, que caberia ao Presidente da República negociar os acordos para o exercício desse direito nas colónias portuguesas. Por outras palavras: o ciclo imperial português chegara ao fim.

Ao mesmo tempo, embora não fosse evidente para todos, isso significava também que um Portugal pós-colonial seria necessariamente um Portugal europeu. E por esses mesmos dias a porta de uma adesão ao projeto europeu foi aberta de maneira singular por um simples campista que estanciava de calções junto à sua tenda no parque de Monsanto.

Estranho? Nem por isso. É que esse campista não era um campista qualquer, mas antes o primeiro-ministro trabalhista dos Países Baixos Joop den Uyl, também conhecido por John van Uyl.

O sr. Den Uyl foi, se não estou em erro, o primeiro chefe de governo de um país da então CEE que deu garantias a Portugal de que o nosso país entraria naquilo que é hoje a União Europeia. No meio das notícias sobre o fim da guerra e a iminente descolonização, as declarações de Den Uyl passaram tão despercebidas quanto a discreta presença do político holandês no parque de campismo de Monsanto. No mesmo sábado em que Spínola reconheceu que as colónias seriam independentes, o então ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares lá conseguiu encontrar o primeiro-ministro holandês e levá-lo a passear até à Praia Grande. E no dia seguinte, 28 de julho, Joop den Uyl dirigiu-se à embaixada do seu país e aí declarou que “escolhi o vosso país para fazer campismo porque isso significa uma política de solidariedade”, três meses após a revolução do 25 de Abril, e acrescentou que o seu país via “boas perspectivas para a entrada de Portugal na CEE”. O sinal político estava dado.

Lemos estas notícias nos jornais da época e não deixa de ser surpreendente que nos surpreenda (a repetição é propositada) este tempo em que os líderes dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas passavam férias como os trabalhadores que representavam. E não é só isso que nos surpreende no percurso do nosso amigo campista holandês (ou, para os picuinhas, norte-holandês, nascido em Hilversum).

Van Uyl não era um político comum. Durante a Guerra, arriscara a vida editando e distribuindo um jornal clandestino da resistência anti-fascista. Com a paz tornou-se investigador no centro de estudos do Partido do Trabalho, e começou a tornar-se conhecido pelos seus modos invulgares para a cultura política então vigente no seu país, então sempre muito afável. Den Uyl era abrasivo; por isso gerava grandes ódios e grandes adesões.

Em 1973 Den Uyl ganhou as eleições numa aliança com o partido liberal-libertário D66, formado uns anos antes durante a voga radical da década de 60, e tornou-se primeiro-ministro. Não teve vida fácil. Com a crise petrolífera, a inflação subiu para lá dos 10% e o défice orçamental foi multiplicado por dez. Tais condições seriam vistas hoje como uma receita para a inação. O que é impressionante é tudo o que Den Uyl fez, mesmo com estas condições: criou um salário mínimo para os jovens, ilegalizou os despedimentos de mulheres grávidas, impediu os despedimentos coletivos sem negociação prévia com os sindicatos e introduziu os representantes dos trabalhadores nos conselhos de empresas, entre muitas outras coisas.

Olhando para a trajetória do campista que nos abriu a porta da Europa, é impossível não pensar que a sua imaginação política não fosse ainda mais fértil do que a das suas escolhas para passar férias em parques de campismo de países em processos revolucionários. Vai-se a ver, e talvez as duas coisas estejam relacionadas. Há uma maneira de fazer política como cidadão comum que se perdeu, e que urge recuperar tanto quanto vale a pena recuperar a memória do homem que nos ofereceu a Europa, de calções.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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