Capítulo perdido da autobiografia de Malcolm X reaparece em leilão

Desde os anos 90 que havia rumores de que o livro, co-escrito com o jornalista Alex Haley, fora amputado de algumas partes mais explosivas. Agora apareceu mesmo à venda o que parece ser um capítulo inédito.

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Primeira página de texto do capítulo <i>The Negro</i>
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Primeira página de texto do capítulo The Negro

Um dactiloscrito de 25 páginas intitulado The Negro, que corresponderia a um capítulo inédito retirado da célebre autobiografia de Malcolm X – publicada logo após o seu assassinato, em 1965 –, foi comprado esta quinta-feira em Manhattan, por sete mil dólares (cerca de seis mil euros), num leilão promovido pela Guernsey’s.

A possível existência de vários capítulos que teriam sido deliberadamente deixados de fora da polémica autobiografia de Malcolm X (1925-1965), um dos mais influentes activistas afro-americanos do século XX, era há muito assunto de discussão entre académicos. O documento agora leiloado, e que foi adquirido pelo Centro Schomburg de Investigação em Cultura Negra, um departamento da Biblioteca Pública de Nova Iorque, parece confirmar que os rumores eram pelo menos parcialmente verdadeiros.

A questão surgiu em 1992, quando os herdeiros do jornalista Alex Haley, co-autor devidamente creditado da autobiografia de Malcolm X, venderam o dactiloscrito original da obra a um proeminente advogado e coleccionador de Detroit, Gregory Reed, cujo escritório declarou recentemente falência e que enfrenta neste momento um processo judicial por suspeita de fraudes.

O advogado, que há 25 anos pagou mais de cem mil dólares pelos papéis de Haley, afirmou então à imprensa que estes incluíam três capítulos retirados da autobiografia de Malcolm X por serem demasiado incendiários, e revelou mesmo os respectivos títulos: The Negro, 20 Million Muslims e The  End  of  Christianity.

No leilão da Guernsey’s foi também à praça o dactiloscrito original, profusamente anotado à mão por Malcolm X e Alex Haley (igualmente autor do romance Raízes, que inspiraria uma série televisiva de sucesso), mas ninguém cobriu os 40 mil dólares da licitação de abertura. Isto durante o leilão, mas pouco depois de este ter acabado, os responsáveis do Centro Schomburg anunciavam que tinham comprado, por um montante não revelado, não apenas o dactiloscrito, mas também uma dúzia de fragmentos inéditos que tinham ficado por licitar. “A Autobiografia de Malcolm X é um dos livros mais importantes do século XX, e dispor da versão com as correcções de Malcolm X e poder ver os seus pensamentos a tomar forma é algo incrivelmente forte”, disse o director do Schomburg após o leilão.

Quando o académico Manning Marable estava a ultimar a sua premiada biografia de Malcolm X – morreu pouco antes de o livro ser publicado, em 2011 –, Gregory Reed concedeu-lhe 15 minutos, num restaurante de Detroit, para espreitar algumas páginas dos míticos capítulos perdidos. Marable acreditava que o biografado os tinha escrito ou ditado no período final da sua militância no movimento Nation of Islam, quando ainda defendia a superioridade racial dos negros, preconizava a sua completa separação dos brancos, e criticava a estratégia de não-violência adoptada por Martin Luther King e outros dirigentes.

O texto de The Negro, cuja primeira página foi reproduzida pelo New York Times, abre com este diagnóstico: “O mundo ocidental está doente. A sociedade americana – com a canção do Cristianismo a dar a dar ao homem branco a ilusão de que o que fez ao homem negro está certo – está tão doente como a Babilónia. E nesta selva, o homem negro, o chamado “preto”, é o mais doente de todos”.

Pelo pouco que pôde ver, Marable dizia não estar certo de que o material tivesse sido retirado do livro após a morte de Malcolm X, que foi assassinado por membros Nation of Islam após ter abandonado a organização e repudiado os seus princípios racistas e separatistas. Mas do que o académico não duvidava é que o livro, tal como foi publicado, revela uma profunda influência do ponto de vista de Haley, um integracionista de convicções liberais.

Uma das vantagens de o dactiloscrito original ter ido agora parar a uma instituição pública, após longos anos em mãos privadas, é a possibilidade de se estudar em detalhe as divergências entre  Malcolm X e Alex Haley quanto ao que deveria ser o texto final da autobiografia, bem ilustradas em abundantes apontamentos escritos por um e outro nas margens do documento.

Mas se este leilão veio confirmar a existência de um capítulo perdido, fica por esclarecer o que aconteceu aos outros dois referidos por Gregory Reed. Nunca existiram? Estavam incompletos e correspondem aos fragmentos soltos que o Centro Schomburg agora também adquiriu? Existiam, mas o advogado já lhes tinha dado outro destino antes de os seus papéis irem parar ao leilão da Guernsey’s?

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