Filmes em carne viva

Recolha das folhas de sala das sessões do cineclube Lucky Star, que vem preferindo os falhanços de crítica e de público ou projectos pessoais, fora do cânone.

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Esta selecção privilegia filmes esquecidos ou considerados menores

Nas últimas duas décadas, a escrita sobre cinema foi perdendo espaço na imprensa — literalmente: o número de caracteres disponíveis aos críticos nas páginas dos jornais de referência tem vindo a reduzir-se a olhos vistos (já para não falar no número de críticos). Ao mesmo tempo, e em sentido contrário, na internet — dos blogues aos vídeo-ensaios, da partilha mais ou menos legal de ficheiros ao Facebook — foi nascendo uma verdadeira comunidade, em que académicos, críticos e cinéfilos de todo o mundo trocam ideias e sugestões, provocam-se, louvam obras-primas negligenciadas, repudiam realizadores admirados (e vice-versa). Ultimamente, esta comunidade, virtual, tem procurado uma maior presença no “mundo real”. O cineclube Lucky Star, criado por João Palhares e José Oliveira em Braga (ajudando a colmatar a falta de cinema fora da lógica das grandes superfícies em cidades que não se chamam Lisboa ou Porto), e Uma Viagem pelo Cinema Americano, recolha em livro das folhas de sala maioritariamente escritas pelos dois para cada sessão, são provas disso.

Tanto João Palhares como José Oliveira mantêm blogues pessoais (Cine-Resort e Raging-B, respectivamente), nos quais, ao longo dos anos, moldaram uma visão muito particular sobre o cinema, bem patente na programação do Lucky Star (nome sugerido por Pedro Costa, que também escolheu o primeiro filme exibido pelo cineclube: Monsieur Verdoux de Charles Chaplin). Ambos têm em alta estima cineastas malditos e marginalizados, o (na sua opinião) incompreendido, subvalorizado e injustiçado Michael Cimino à cabeça — todas as suas longas-metragens foram exibidas e largamente elogiadas nas folhas de sala, mesmo aquelas cuja defesa é mas complicada (o próprio Palhares revela essa dificuldade ao escrever sobre The Sicilian e a interpretação de Christopher Lambert). Ambos preferem filmes em carne viva, normalmente sobre losers da sociedade, em que se expõem as fragilidades, as obsessões, os traumas e demais paixões dos seus autores, por oposição ao cinema bem feitinho e comedido, ao cinema oportunista de outros (e esta ideia de “oposição” é importantíssima para a maneira como definem o “seu” cinema e os “seus” realizadores).

Mesmo não se coibindo de programar consagrados como Scorsese, Coppola, Lang, Antonioni, Lumet, Preminger, Griffith, Hitchcock ou o já citado Chaplin, Oliveira e Palhares raramente optaram pelas obras mais consensuais, preferindo os falhanços de crítica e de público ou projectos mais pessoais, fora do cânone. De resto, esta selecção de cinema norte-americano do mudo à actualidade, com especial pendor para a década de 70, que ocupou grande parte dos dois primeiros anos de actividade do Lucky Star (e o título do livro e do ciclo traz logo à lembrança A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, percurso tão subjectivo e pessoal quanto este), inclui sobretudo filmes esquecidos ou considerados menores: Ride Lonesome de Budd Boetticher, Five Easy Pieces de Bob Rafelson, The New Centurions de Richard Fleischer, Best Seller de John Flynn, Gremlins 2 de Joe Dante, entre inúmeros exemplos. Até nas escolhas mais recentes se nota essa tendência: o “reaccionário” Clint Eastwood e o “clássico” James Gray são dos realizadores em actividade mais celebrados.

Embora haja uma óbvia proximidade estética entre os autores de Uma Viagem pelo Cinema Americano, os estilos distinguem-nos (ou complementam-se). José Oliveira, também cineasta (a sua curta-metragem Longe esteve no Festival de Locarno), é mais desregrado, lançando-se muitas vezes para lá ou a partir dos filmes para falar de livros, de música, da vida na cidade, de amigos. Alguns textos perdem com a ausência do seu objecto: funcionarão melhor como folhas de sala do que como parte de um livro deste género. João Palhares, por seu lado, é mais tradicional, gosta de contextualizar, de mergulhar na obra de um dado realizador para comentar o filme em mãos, citando pequenas histórias à volta da rodagem, observações de quem nela participou, trechos de outros críticos, não deixando de manter, no entanto, um cunho pessoal. Escrito isto, é curioso verificar a enorme influência de João Bénard da Costa, figura maior da cinefilia portuguesa, na escrita dos dois.

Um ou outro texto de Uma Viagem pelo Cinema Americano não é assinado pelos autores, antes por amigos e comparsas (Mário Fernandes, José Lopes), acentuando aquela ideia de comunidade apontada no primeiro parágrafo. Uma comunidade revelada ainda nos vídeos enviados por convidados a falarem sobre cada filme exibido (podem ser vistos no Youtube do Lucky Star) ou nas participações de Oliveira e Palhares em outras publicações on-line como a brasileira Foco ou o português À pala de Walsh, que recentemente também mereceram edições em livro. Sinal de que certos textos continuam a viver melhor em páginas impressas do que num ecrã de um computador ou de um smartphone e um fenómeno que enriquece o panorama da edição sobre cinema em Portugal.

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