"As pessoas acreditam mais ao verem do que ao lerem"

Filho e neto de políticos, João Pina encontrou na fotografia a linguagem para fazer o que mais lhe interessa: contar histórias. Aos 37 anos, tem três livros publicados, obras que funcionam como documentários, resultado de um trabalho lento que desafia a velocidade a que as imagens circulam actualmente. É um jornalista que questiona o mercado e afirma que estes são tempos inspiradores para a fotografia.

Fotogaleria
Fotogaleria

Chegou há poucos dias a Lisboa para fazer fotografia de cena. Naquela tarde as filmagens estavam marcadas para o Largo do Intendente. É um trabalho muito diferente de 46750, um álbum sobre a violência nas favelas do Rio de Janeiro, recentemente publicado pela Tinta da China. É um número de morte, o dos assassinados naquela cidade brasileira durante o tempo que lhe levou a fotografar o que seria o seu terceiro livro, depois de Por Teu Livre Pensamento, que fez em 2007 com texto de Rui Daniel Galiza, centrado na experiência de presos políticos (Assírio & Alvim), e de Condor, uma homenagem às vítimas das Operação Condor, um plano militar secreto elaborado por seis países da América Latina em 1975 e de que terão resultado 60 mil mortes. João Pina faz agora uma pausa na realidade para se fixar no cinema e perceber um pouco mais dos mecanismos da imagem em movimento. É também uma pausa nas andanças de cidade para cidade. Depois de Nova Iorque, Buenos Aires e Boston, outra vez Lisboa. 

O seu trabalho fotográfico está muito próximo da narrativa.

Pois. O que sempre me interessou foi contar histórias. Não sou bom para escrever, não sou bom para tocar música. A fotografia parecia encaixar muito bem, porque penso muito visualmente, e interessa-me o visual. Mas por detrás está sempre o trabalho de documentação, de pesquisa. Como qualquer jornalista, faço entrevistas, recebo a história das pessoas e a partir daí entendo o que quero fotografar, o que há ali a dizer. 

Nesse sentido, cada um dos seus três livros pode ser visto como um documentário?  

O documentário é uma narrativa construída, e há aqui algumas construções. Depois há o lado menos documento e mais repórter que se transforma em documento, e que é um bocado a aproximação a este trabalho do Rio [de Janeiro]. Também muito trabalho que faço na imprensa é isso, mas não posso estar ali três meses a tentar perceber uma coisa. Há um assunto, meto-me nesse assunto o mais que posso, e vou fotografando o caminho. 

A escola é o jornalismo.

Sem dúvida.

E cada projecto é muito pessoal. 

Sim, estou ciente de que dificilmente encontro um parceiro ou uma parceira para trabalhar num projecto que aguente o tempo que eu aguento, ou precise do tempo que eu preciso para trabalhar nos assuntos. É uma viagem minha. 

Como parte para cada viagem?

Nos dois livros anteriores isso é mais explicável; têm a ver com a história da minha família e da minha curiosidade política. Este tem mais a ver com a minha curiosidade enquanto repórter, querer escarafunchar lugares que estão ali na esquina mas para os quais ninguém olha. Começo a escavar e não sei quanto tempo vou demorar. E no meio disso vão acontecendo outras coisas e eu não vou trabalhando só sozinho. Mas cada livro é uma maratona, sou eu a tentar perceber o que é aquilo, porque é que estou ali, o que faço com aquelas imagens. Criar essas narrativas é um processo meu.

Mas como escolhe os temas?

Não sei se há uma forma analisada de responder a isso, mas acredito que funciono em várias esferas. Há o lado mais ligado à memória histórica, que tem muito a ver com a minha história e me levou a prestar atenção a isso. Os presos políticos portugueses ou as ditaduras. Há uma série de projectos ligados à memória histórica que gostava de trabalhar mais profundamente. E depois há acontecimentos a ocorrer e onde gostaria de estar. A olhar para eles, fotografar, a tentar perceber, a intervir da forma que me é possível. São curiosidades pessoais. O livro do Rio é isso.

Como aconteceu?

Fui ao Rio pela primeira vez em 2006. Tinha estudado fotografia durante um ano nos Estados Unidos, já trabalhava muito na América Latina, tinha muito interesse na América Latina e era claro na minha cabeça que era o sítio onde eu queria estar, mas não sabia onde ter base. Vários editores com quem trabalhava disseram que me davam trabalho mas que eu teria de ter um sítio. Fiz então uma viagem inicial ao Rio para saber se poderia ou quereria viver lá. Já tinha estado em Buenos Aires e acabei por definir que o que fazia sentido era Buenos Aires. Mas passei dois meses no Rio — na altura do Mundial da Alemanha — e houve assuntos, histórias com que me deparei e me interessaram. Como a história da violência urbana, haver três milhões de pessoas a viver em favelas. Aconteceu-me o que acho que acontece aos jornalistas e nos faz mover: querer contar histórias de pessoas que não têm voz. Entrei nesses sítios, primeiro com a polícia, era o mais simples, era acessível, a imprensa fazia-o. E depois quis tentar perceber como é que falava com o tráfico; tentei ir a todas as partes deste assunto para contar a história do que é haver 13 assassinatos por dia numa cidade.

E durante o tempo de trabalho chegou a um número que dá título ao livro: 46750. 

Um número desactualizado, o que é reveladoramente chocante. Foram as pessoas assassinadas desde 2007, quando comecei de facto o trabalho, e o fim de 2016, quando terminei.

Mas entretanto, fixou-se em Buenos Aires. Porquê?

Por várias razões. Identifico-me muito mais com a forma de ser e o dia-a-dia em Buenos Aires do que com a do Rio. Para trabalhar queria um sítio culturalmente mais dinâmico onde eu pudesse ter “mais mundo”. Buenos Aires servia muito bem isso. Eu saí de Portugal em 2004 e comecei a viajar muito em 2002, e os “truques” dos cariocas não são muito diferentes dos nossos, comecei a pôr na minha cabeça: se me querem enganar pelo menos enganem-me noutra língua. E tenho uma grande afinidade pelas culturas de língua espanhola, todo aquele mundo muito mais partido do que o Brasil. Ao mesmo tempo eu sabia que iria estar apenas a duas horas do Brasil de avião, e trabalhei e trabalho muito no Brasil. Portanto, Buenos Aires era uma base e eu passaria muito tempo fora de casa, a trabalhar noutros sítios. Falta dizer que gosto da paixão que os argentinos têm pela cultura, pela política. A intervenção da sociedade civil argentina é brutal. E a história da ditadura argentina é muito rica e eu estava a começar o trabalho sobre a Operação Condor

O seu segundo livro e aquele que projectou o seu nome. É sobre as ditaduras na América Latina, alimentado por esse interesse de que falou. De onde vem esse interesse?

Vem de um episódio que aconteceu na minha vida há 31 anos. Nas férias de verão de 87, os meus pais levaram-me a mim, ao meu irmão e à minha irmã a Cuba. Ainda era Cuba durante a União Soviética, muito longe do que é hoje Cuba. O meu pai [Joaquim Pina Moura] pertencia ao Partido Comunista, mas aquela não era uma viagem política. Ele já lá tinha estado em 1978. Dias depois do meu irmão nascer, foi lá para o Festival Internacional das Juventudes. Nove anos depois voltou lá em família, umas coisas num tour meio organizado, outras a andar a pé. E não era só Cuba que era diferente, Portugal também era muito diferente, tinha acabado de entrar na então CEE. Além disso, a história da minha família também era muito diferente. Essa viagem foi para mim absolutamente exótica e ficou gravada a ferro e fogo na memória. Estar em Cuba, com seis anos. Foram 12 dias.

Que memórias tem?

Incríveis. A primeira vez em que comi manga. Não existia em Portugal, e as mangas em Cuba continuam a ser, para mim, extraordinárias. Há mais de 30 tipos de manga por lá e sei as épocas da manga. Há dois anos estive lá em reportagem com um jornalista que dizia que não percebia a minha obsessão com as mangas. Outra memória é a da temperatura da água do mar, a temperatura do ar, a humidade. Quando regressámos, escrevi, na escola, uma redacção sobre as férias e contava que tinha ido a Cuba, na América Central — na verdade é no Caribe —, mas era para que não fosse confundida com Cuba no Alentejo. Voltámos em 1998, já depois da queda do muro, e vi muitas mudanças em Havana. Aos seis anos tinha memória de andar na rua e o que eu via era muito diferente. Havia prostitutas, vários esquemas a acontecer que a Revolução contava como tendo desaparecido. Com a queda do muro as pessoas passaram fome e cada uma teve de se fazer à vida. Em 2002 arranjei maneira de ir três meses para Cuba trabalhar.

Fotografar?

Sim, e já voltei lá 16 vezes depois disso. Mas o fascínio começou em Cuba e depois comecei a viajar. Pela Argentina, Bolívia, Brasil, até ao ponto de ter mudado para a Argentina onde morei oito anos.

A sua biografia diz que é fotógrafo há 18 anos. 

A fotografia esteve na minha vida muito antes disso, mas como hobby, uma linguagem que eu não dominava. Aos 11 ou 12 anos juntei dinheiro das semanadas e comprei uma máquina fotográfica e ia fotografando coisas de família. Íamos ao Porto ter com os meus avós, eu levava a máquina e fazia umas fotos do almoço. Isso levou-me a querer ter maior domínio técnico, saber como se chegava a qualquer coisa que eu via numa revista. Aos 14, 15 anos, comecei a perceber o que era uma velocidade na abertura, que não era só apontar e disparar e aos 18 anos, estava acabar o liceu com Matemática pendurada, quando um amigo abre uma revista de música. Perguntei se precisava de fotógrafos. A ideia de ir a concertos tirar fotografias era porreira. Tinha vindo de férias de Marrocos e mostrei-lhe umas fotos que fiz. Ele pôs-me a fotografar concertos. Isso deu origem a um estágio num jornal e depois a ser freelancer. Ao mesmo tempo continuava a estudar. Fiz Gestão de Marketing à noite. Quando percebi que o que queria era fotografar, já havia o plano B, um curso superior, mas não tinha interesse para mim enquanto trabalho. 

Entretanto, foi para os Estados Unidos.

Sim, entre 2004 e 2005. Candidatei-me a uma escola em Nova Iorque. Fotojornalismo e Fotografia documental. Parei com tudo. Era uma escola muito cara e eu não ia para lá brincar. A seguir comecei a trabalhar à séria. Fui para lá com o primeiro livro. Não estava impresso. Mas na minha cabeça estava feito.

O que é que essa escola lhe ensinou?

Ensinou-me a pensar fotografia. Não me ensinou a fotografar porque eu já sabia mecanicamente fazer uma foto, mas ajudou-me a pensar o poder da imagem. Mais do que questionar, a entender que existe uma linguagem fotográfica e que, para mim, é a linguagem universal.

Falava da Operação Condor. O livro demorou-lhe dez anos e nasce por aí. O que o fez avançar?

Mostrei esse livro a várias pessoas. Ficarem fascinadas porque não sabiam nada da história de Portugal, e gostaram da forma que eu tinha arranjado de fotografar algo que já não existia, mas que ainda lá estava. Encorajaram-me a fazer alguma coisa com aquele corpo de trabalho e aconteceram um livro e a exposição. Continuei à procura daquele tipo de temas, pelos quais tenho um fascínio e que quero saber, entender e explorar. Como bom junkie de notícias estava estava sempre a ler, e li pela primeira vez sobre a Operação Condor. Nesse momento fez sentido começar a olhar para este assunto; como é que seis países se juntaram numa aliança para aniquilar a oposição? Foi um livro que ajudou a confirmar o meu trabalho, sim, mas não mudou a minha vida. Continuo a querer fazer as mesmas coisas, cada vez com recursos mais limitados. Hoje sei que se tivesse começado o Condor em 2015 e não em 2005 nunca o teria feito.

Porquê?

Não teria tido energia, não teria tido recursos. Se me dissessem que eu teria de andar nove anos a pôr dinheiro do meu bolso, de um sítio para o outro, fazer três campanhas de crowdfunding... Fez parte daquele momento. Dediquei muita energia, muitos recursos, a um assunto que aparentemente ninguém queria. Eu sabia porque me interessava: interessava-me falar com aquelas pessoas, entender aquelas histórias. E isso demora. Não é só porque sou lento. É porque preciso de tempo para pensar naquilo, preciso de fazer maquetas. No livro do Rio fiz 41 maquetas, tenho 41 versões diferentes do livro.

E quantas fotografias?

No total, umas 45 mil. É o meu primeiro livro em digital. Os outros foram com filme. Fui fazendo ao longo dos anos. Parei a primeira vez para olhar em e tinha 30 mil. Olhei para cada uma dessas fotos. 

Não se perde o fio à meada?

Não. Pelo contrário. Acho que se perde se não fizer esse exercício. Enquanto ia fotografando ia editando, mas de uma forma um bocado dispersa, sem entender o que eu estava a querer dizer. Precisei de fazer uma pausa e fui aos meus discos e organizei um catálogo com todas as fotos que eu tinha feito no Rio de Janeiro. Olhei para essas 30 mil fotos. Passei um mês, oito horas por dia, fiz uma selecção de 500 ou 600 e isso permitiu-me ter uma noção do que tinha e ajudar-me a decidir o que eu ainda queria fazer. No final de 2015 voltei ao Rio de forma menos dispersa. Estavam a faltar-me pontos. Havia pausas, havia silêncios que eu não tinha. 

Num livro, como se nota que falta silêncio?

Se as notas estão todas muito altas... aquilo deve ser como uma sinfonia; tem de haver altos e baixos, ninguém aguenta 60 e tal fotos a levar paulada; tem de haver momentos em que se baixa o ritmo e as pessoas possam respirar, pensar um bocado no que já viram e depois voltamos ao mesmo. A narrativa do livro anda muito à volta disso. Tiroteios, operações, violência, cadáveres e de repente entra-se nota coisa para reentrar outra vez. Uma espiral que nunca termina. E a vida continua, mesmo que as pessoas estejam a morrer há sempre alegria, momentos bonitos a acontecer em paralelo. 

Está a fotografar os bastidores de um filme. Qual é a diferença entre fazer fotografia de cena e fotografar o real. 

Na fotografia de cena é tudo falso, mas através da ficção podemos contar muitas coisas que de outra forma seria impossível, ficar mais próximo do que pode ser a verdade. Isso é muito interessante e não é à toa que eu estou ali a olhar para ver como se faz. Não acho que vá virar realizador, mas interessa-me perceber os mecanismos. Na hora de fotografar não é muito diferente. Se for num ambiente real, tento pôr-me em situações em que seja viável fotografar. Fotografo muito mais do que as pessoas vêem. Algumas fotos são muito violentas, porque se estou lá a minha função é essa, e na hora de editar decido a quantidade de brutalidade que quero passar. Para isso há duas cassetes na minha cabeça. Uma sou eu enquanto estou ali a fotografar e a outra sou eu já recolhido, a ver o que é que faz sentido mostrar.

Não hesita no momento de disparar?

Claro que hesito. Há imagens que nunca fiz.

Porquê?

Por mil e uma razões. Porque não era seguro, porque as pessoas não estavam confortáveis, porque eu não estava confortável. Tem de haver um alinhado de estrelas quando são situações muito perigosas, e eu tenho de sentir que é o momento de levantar a máquina e fotografar. Às vezes é o momento de fazer três fotos, baixar a máquina e continuar a conversar com as pessoas. Não há uma receita, mas há momentos em que sinto que é a altura e outros em que sinto que não. E vem sempre a tal insatisfação, saber que houve um momento que era preciso ter disparado e não disparei. Depois é gerir essa frustração e tentar não puxar demasiado a corda, não me pôr demasiado em risco. Em todas as situações que fotografo estou identificado como fotógrafo, e sempre a falar com as pessoas a explicar o que estou ali a fazer. Isso pode demorar dias, meses, e às vezes demora segundos. Há casos em que estive dois anos para chegar a determinada situação e outros em que quando sou apresentado me dizem logo ok. 

E na hora de mostrar... Hoje há a sensação de que se mostra tudo.  

Estamos num momento muito interessante nesse aspecto. Hoje existe uma consciência do fotográfico como nunca existiu. 

Porque nunca foi tão fácil fotografar?

E nunca foi tão fácil olhar para fotografia. Há 20 ano tinha duas ou três plataformas para mostrar as minhas imagens. Jornais, livros galerias ou museus. Neste momento não preciso de nada disso para mostrar o meu trabalho. Há o Instagram, muitos sites. Isso está a revolucionar a forma como lidamos com a imagem. Por um lado, as pessoas estão muito mais conscientes, e logo muito mais reticentes, mas por outro existem plataformas de criação de audiência como nunca existiram. Isso é muito inspirador. Permite aos profissionais terem uma audiência mais alargada, construir a sua própria audiência. Veja-se o Humans of New York, um caso interessantíssimo, alguém que conseguiu fazer e projectar um trabalho de uma forma extraordinária. 

Qual é o lado pernicioso disso?

Existe um ruído visual brutal. Mas acho que isso não é uma questão da imagem, mas da sociedade em que estamos e que estamos a construir, muito dedicada ao individualismo, ao consumismo e não é à toa que a maior parte dos Instagrams são selfies, fotografias de pratos, de lifestyle, daquilo que queremos que os outros pensem que é a nossa vida. A fotografia é instrumentalizada nessa direcção. Mas ao mesmo tempo sinto que há uma curiosidade, um fascínio e uma cultura... Muitas das pessoas com um simples telefone têm um sentido estético interessante. Depois é como aprender a escrever. Há dez anos estávamos todos a aprender a fotografar. O filme está hoje a ser bastante utilizado porque se se começa com um telefone, muitas vezes queremos perceber mais e voltamos ao laboratório, ao preto e branco. Portanto, existe uma nova linguagem que vem do digital e em alguns casos volta ao analógico, que é muito interessante. Usar a linguagem do século XXI, das redes sociais, incorporada na fotografia. São pesquisas interessantes. Há ainda outro aspecto, esta crise na imprensa tem o lado positivo de usar as pessoas que estão nos sítios em vez de enviar fotógrafos próprios. A Internet criou e disponibilizou essa rede, dá oportunidades a quem de outra forma nunca as teriam. Há fotógrafos fora dos eixos tradicionais da fotografia a fazerem trabalhos extraordinários e a terem reconhecimento. Hoje não interessa onde as pessoas estão, mas o que estão a fazer. O modelo económico é outra questão, mas enquanto criação é muito inspirador. 

Há pouco usou uma expressão, “consumir”, aplicada à imagem. Ela tem uma carga pejorativa. Pode exacerbar ou matar a emoção. Pode ser a banalização...

Depende da plataforma. De facto, já ninguém aguenta abrir um jornal e assistir sempre à mesma narrativa miserabilista. Mas continuo a achar que imagens — e normalmente imagens paradas, ou seja, fotografia — continuam a causar impacto. Depois há a reacção imprevisível, que é a reacção do público, a viralização, como agora se diz, de determinadas histórias. As pessoas que trabalham em publicidade pensam isso muito bem, em formas e fórmulas para se viralizarem assuntos importantes. Isso vê-se muito nas redes sociais. Lembro-me sempre muito do vídeo do Salvador, aquele rapaz em cadeira de rodas que ia pelos passeios de Lisboa e os encontrava cheios de carros. Fez-se um filme à volta disso. Isso vem muito menos do lado dos contadores de histórias do jornalismo e muito mais do consumo. As imagens que mais causam impacto e mais nos alteram os hábitos vêm, no plano teórico, do lado que menos gostaríamos que viessem.

É o jornalismo que falha ou são os outros que se estão a apurar?

Não gosto de pôr as coisas nesse sentido, mas acho que é um pouco as duas coisas. Os publicitários sempre conseguiram romper as barreiras mais depressa do que os jornalistas. Os jornalistas andam muitas vezes atrás de fórmulas que funcionaram para alguns e muitas vezes é isso mesmo que faz com que falhemos enquanto jornalistas. Se aquilo já foi visto não vai produzir o mesmo efeito. Mas os publicitários não têm as obrigatoriedades do mundo editorial, não têm de se fixar nos factos, na verdade. Têm liberdade para experimentar muito mais. Isso falta ao jornalismo, tanto por falta de recursos como pela deontologia, mas também de vontade de mudar. Digo isto e sou um tradicionalista, continuo a achar que a forma de contar histórias tem de ser hiper-factual. Mesmo num trabalho em que teria todo o direito em fazer o que quisesse, em que não estou necessariamente associado ao jornalismo, continuo a reger-me pelas regras do jornalismo. Eu venho do jornalismo, as legendas tem de estar super-precisas, tudo o que faço está baseado em factos. 

Até que ponto concebe manipular?

No limite tudo é manipulado. A escolha de um ângulo, por exemplo. Mas talvez não seja uma manipulação porque não estou ali com o intuito de enganar ninguém. Estou a editar, ou seja, a fazer uma escolha para o que quero dizer, e isso é assumido. Mas essas fronteiras hoje em dia estão muito postas em causa. Seja pelos políticos, por muitas cagadas feitas pelo jornalismo ou por quem acha que é o mesmo ler uma coisa no New York Times ou um comentário de alguém no Facebook. Isso acontece e ninguém sabe muito bem o que fazer com isso. Mas ao mesmo tempo acho que as pessoas ao verem acreditam mais do que ao lerem. 

Apesar de se saber, mais do que nunca, como é fácil a manipulação? 

Acontece todos os dias sermos manipulados por imagens e muito por ignorância nossa. A BBC também se engana, por exemplo, pôr uma imagem de guerra na Síria e a foto ser de Gaza. Por isso, haver editores é importante, e haver fact-checking. A imagem foi a principal arma de propaganda do século XX, mas acho que é cada vez menos porque as pessoas já questionam mais, já não acreditam em tudo o que vêem.

Isso torna-nos cínicos. 

Pois, mas mais uma vez, isso não é um problema da fotografia. Não há fotógrafo, escritor ou quem quer que seja que vá mudar o mundo. Não acredito que com uma imagem se pode mudar o mundo, mas acredito que alguém, tendo voz própria, genuína e honesta, pode criar e fazer alguma diferença. Não é mudar o mundo, é fazer com que cinco ou dez pessoas se questionem ao entrar no exposição, ao ler um artigo, a pegar num livro.

É isso que o faz querer fotografar?

Claro que é. Essa é a magia de fazer trabalhos criativos, causar impacto na vida de outras pessoas; gostarem, questionarem, detestarem, mas não saírem da mesma forma como entraram. Mas eu só controlo o processo, não controlo o impacto. Posso tentar, ter estratégias, pensar em como potenciar o trabalho, mas nunca sei como as pessoas vão reagir. Nem quero.

A fotografia que faz tem um conteúdo muito político. 

Tudo na vida é político, quem tenta ignorar isso está a enfiar a cabeça na areia. Cada grama de cocaína vendida neste bairro tem impacto na América Latina. Morrem pessoas na América Latina para que haja cocaína em Portugal e em Espanha e nos Estados Unidos. Está na altura de tirar a cabeça da areia e pensar que há coisas que eu posso dispensar e outras que são indispensáveis. Acho que estamos a tomar consciência disso. Mas falando de fotografia: o meu tempo de vida é limitado, os meus recursos são limitados e tenho de decidir o que quero dizer, aquilo a que quero dar voz, onde quero gastar a minha energia, a minha saúde. Não estou nisto para dar voz àquilo a que um editor a quatro ou cinco mil quilómetros decide que tem de ser dado, a não ser que a agenda dele coincida com a minha. A questão é como é que se sobrevive no meio assim.

Como é?

Tenho tido muita sorte e conseguido compatibilizar algumas encomendas com o que quero fazer.  Pode ser um filme de ficção, uma história sobre violência, ou uma coisa que aconteceu há 50 anos. Para chegar aqui experimentei tudo e mais um par de botas. Fotografei desporto, concertos, fachadas, fiz retrato, muita coisa que me permitiu evoluir tecnicamente, e definir interesses. Faço menos dinheiro, mas passo tempo onde quero passar tempo. 

Sabe quais sãos as suas maiores fragilidades enquanto fotógrafo?

Não sei. Acho que têm mais a ver com a minha personalidade; tento entendê-las para quando for fotografar estar mais à vontade. E tento não ser etnocêntrico. Todos partimos sempre do nosso ponto de vista. Mas há uma arrogância que vem do facto de ser ocidental. Tento ter essa consciência, nem sempre consigo. Tentar trabalhar com isso é um desafio. 

Que leituras nos podem fazer pensar melhor sobre fotografia?

Acho que o Olhar o Sofrimento dos Outros [livro de Susan Sontag]. Dou aulas e não há nenhuma em que esse livro não venha para cima da mesa. 

O que se retira desse livro?

Alerta para a espectacularização da miséria alheia, que normalmente é mesmo a alheia, a longínqua. Por outro lado acho que tem de haver espaço para essas imagens existirem porque é importante as pessoas saberem, e é importante essas pessoas sentirem-se ouvidas. Mas ser carcaça a apodrecer com abutres à volta é outra questão. Mas há topógrafos de um humanismo a toda a prova. E há outra coisa: em situações extremas os fotógrafos são muito mais agressivos, mas também estão muito mais expostos do que qualquer pessoa da escrita.

E como gere o medo?

O medo é o que nos mantém vivos e alerta. Tento que o medo não me congele, porque estar petrificado não me vai servir de nada. Mas não há uma fórmula porque não há um momento igual ao outro. O problemas é como conciliar isso com a pressão, os editores, a entrega..

Como se lida com um editor que não esteve no sítio e é ele que decide? Há um grande diálogo, confiança total? 

Não sei. Não tenho interesse em trabalhar com uma série de pessoas porque eu questiono a escolha das fotos. Isto não é um bem de consumo. Tem de haver uma conversa e prezo muito essa conversa e prezo muito pessoas que estão abertas e disponíveis para isso. Tenho não ser o pára-quedista nestas histórias, tento ir para lugares que conheça e que vá aprofundado. Volto muitas vezes aos mesmos sítios, às mesmas histórias, até entender o que estou a fazer. Isso não casa muito bem com estes tempos de consumo e o vazio que isso gera. Para mim é importante não falar para o coro, ou seja, para as pessoas que já sabem. Gosto de falar para pessoas disponíveis para questionar 

Dizia que na base de tudo está a vontade de contar histórias. 

Sim. E nisso Continuo à procura da minha voz, às vezes é bipolares, mas...

Sugerir correcção
Comentar