As múltiplas faces de Orlando di Lasso

A música religiosa e profana de Orlando di Lasso (1530/32-1594) dominou a segunda apresentação do ensemble Odhecaton no ciclo Reencontros – Memórias Musicais no Palácio de Sintra, uma iniciativa da Parques de Sintra.

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Odhecaton

O ciclo Reencontros – Memórias Musicais no Palácio de Sintra, uma iniciativa da Parques de Sintra – Monte da Lua e do Divino Sospiro, continua a distinguir-se pela alta qualidade e por contribuir para colmatar uma lacuna da maior parte das programações musicais ao longo do ano: a quase ausência de repertórios medievais e renascentistas. Desde o início desta 4.ª edição já passaram pelo Palácio da Vila agrupamentos como L’Arpeggiata,  Ala Aurea e Odhecaton, para além da incursão no flamenco através da companhia Cadenza Andaluza. No próximo fim-de-semana (dias 27 e 28) está prevista a participação da Accademia del Piacere, dirigida pelo gambista Fahmi Alqhai, com música espanhola dos séculos XVI e XVII.

Os últimos dois concertos deram a ouvir as vozes magníficas do ensemble Odhecaton, dirigido por Paolo da Col, no belíssimo espaço da Sala dos Cisnes. A polifonia franco-flamenga preencheu o primeiro programa, centrado na devoção mariana e na simbologia do número, e a música religiosa e profana de Orlando di Lasso (1530/32-1594) dominou a segunda apresentação do grupo, cujo nome presta homenagem ao primeiro volume de polifonia impresso em Veneza por Petrucci: Harmonice Musices Odhecaton (1501).

Um dos expoentes máximos da polifonia franco-flamenga, Orlando di Lasso teve uma formação e um percurso profissional cosmopolita que passou pelos Países Baixos e por importantes centros musicais italianos (Milão, Nápoles, Roma, entre outros) e alemães (Munique na Baviera e não Mónaco como se lê no programa de sala, do qual constam vários erros de tradução). A sua versatilidade, o domínio de vários géneros, estilos e línguas, a mestria contrapontística e a hábil exploração da relação texto-música contribuíram para uma produção musical multifacetada, na qual encontramos quer a cultura erudita mais refinada, quer influências da cultura popular. Esta variedade emergiu de forma evidente do programa proposto pelos Odhecaton, intitulado Os humores de Orlando di Lasso, e foi acentuada pela interpretação. Inteiramente composto por vozes masculinas, o Odhecaton consegue combinar fortes identidades vocais (alguns dos seus membros são solistas com importantes carreiras como é por exemplo o caso dos contratenores Alessandro Carmignani e Andrea Arrivabene ou do tenor Luca Dordolo)  com a coesão do conjunto. Os seus cantores são também capazes de passar facilmente da expressão mais solene, espiritual ou melancólica de peças como La nuict froide et sombre, In monti Oliveti ou Cum essem parvulus à teatralidade mais exuberante, ao humor ou mesmo a um canto mais rústico em páginas como Zanni! Piasi, patrò? (influenciada pela commedia dell’arte e objecto de uma cómica representação falada antes de ser cantada ),  O là, o che bon eccho! (admirável composição a dois coros que estabelece um diálogo com o próprio eco) ou Chi chlichi. As três secções do programa, designadas como “Humor melancólico”, “Humor sanguíneo” e “Laudatio Dei, Laudatio musicae” permitiram apreciar essas cambiantes e percorrer géneros que vão desde a polifonia sacra em latim às diversas manifestações da polifonia profana como o madrigal italiano, a chanson franco-flamenga e a villanella napolitana. Das páginas mais sublimes à linguagem mais crua de influência popular patente nalgumas peças da secção central, o Odhecaton mostrou um elevado domínio técnico, uma sonoridade encorpada, mas que não obscurece a nitidez das texturas musicais, e uma vincada consciência da relação texto-música. Como encore Paolo da Col propôs a passagem para um outro universo através de uma das mais emblemáticas peças de Arvo Pärt (Da Pacem ), também esta cantada de modo exemplar.

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