No museu das palmadinhas nas costas

Antes de nos propormos a criar um museu ou um monumento devemos refletir sobre o tipo de sociedade que queremos neles projetar.

A recente proposta do município de Lisboa para a criação de um museu da “descoberta” ou da “viagem” tem suscitado uma grande variedade de intervenções no espaço público. Académicos, ativistas, políticos, jornalistas, romancistas e muitos outros cidadãos e cidadãs têm-se pronunciado sobre este assunto. A vitalidade do debate fora dos jornais e universidades revela que em Portugal as pessoas se preocupam e refletem sobre história e memória. Essa vitalidade também mostra, para grande desconforto de uma parte das nossas elites, que o passado é um campo de conflito e de negociação construído no presente, por todos os que nele vivem. Como dizia o historiador Fernando Rosas, na história não existem casos encerrados.

A noção de que o passado é um campo de intervenção feito no presente tem sido manifestada, de forma mais ou menos consciente, em debates públicos. No passado dia 20 de Junho, o ICOM Portugal juntou um painel de seis oradores no Museu do Oriente, em Lisboa, para responderem à questão: “Concorda ou não com a criação de um Museu das Descobertas e porquê.” O ICOM (acrónimo inglês de Conselho Internacional dos Museus) é uma organização não-governamental que congrega museus e profissionais de museus a nível mundial e funciona como órgão consultivo das Nações Unidas.

Apesar de a filial portuguesa do ICOM ter divulgado o painel de convidados como sendo o mais representativo até ao momento, e apesar da variedade de opiniões que existe no próprio ICOM, a reunião esteve muito longe de corresponder ao vigor e diversidade que o debate tem tido no espaço público. Todos os convidados eram brancos, contava-se apenas com uma mulher, e a sua média de idades estava acima dos 60 anos. Apesar de todo o respeito que pessoas com estas caraterísticas merecem, é surpreendente que a organização não se tenha esforçado para adequar o painel à representatividade a que se propunha. Poderão dizer que havia uma grande diversidade de ideias entre os intervenientes, e que essa variedade justificava a composição da mesa. Pois, seríamos todos enganados. Apenas dois dos convidados manifestaram sérias objeções à criação de um museu da “descoberta”. A maioria voltou a insistir, na sequência de vários artigos na comunicação social, na criação de um museu que dê corpo a uma grande narrativa nacional e determinista. Os vários nomes propostos para o museu, nomeadamente “interculturalidade”, “viagem” ou “história nacional”, não descolam das velhas narrativas nacionalistas e são, na verdade, eufemismos para o termo que todos têm pejo em assumir: luso-tropicalismo.

A diversidade não deve ser apenas um recurso retórico em que se impõem diferentes pontos de vista. Mais do que isso, deve ser uma prática que inclua pessoas que verdadeiramente representem várias comunidades e pontos de vista. Nesse sentido, a representatividade geracional salta desde logo à vista. O tempo presente é de todos nós e é o resultado das experiências de todas as gerações que nele vivem. Por que é que só os mais velhos podem pronunciar-se sobre um projeto desta natureza, ainda mais quando as suas posições já não são consensuais e estão em disputa?

Luís Raposo, ex-diretor do Museu Nacional de Arqueologia e atual presidente do ICOM Europa, integrou o painel e defendeu a viabilidade do projeto do “Museu do Homem Português” no contexto da sua proposta para um museu da “viagem”. Esta ideia surgiu no final do século XIX, tal como as primeiras propostas para um museu sobre os “descobrimentos”, e fundamentava-se na necessidade que as elites liberais de então tinham de legitimar o seu poder, a consolidação do Estado-nação e as pretensões portuguesas na corrida por novos espaços coloniais. Esse “Homem Português” não era mais do que o retrato do homem branco que governava a partir de Lisboa. Socialmente privilegiado, projetava-se sobre objetos arqueológicos e etnográficos, e na suposta unidade material e espiritual da nação. Essa nação imaginada, que durante o salazarismo ia “do Minho a Timor”, continua a inspirar as elites contemporâneas. Como se na história tudo tivesse acontecido na expetativa que elas chegassem.

Claro que, no Museu do Oriente, houve quem disputasse esta e outras propostas. Aliás, nada disto passaria o crivo dos historiadores e antropólogos que têm trabalhado sobre este assunto nos últimos anos. Também se pôs em causa a esmagadora presença de senhores brancos no painel. Porém, esses questionamentos foram surpreendentemente omitidos do comunicado redigido pelo ICOM Portugal na sequência do debate. Ficou claramente no ar a ideia de que este debate se destinava a conter as possibilidades da discussão, e a apresentar os presentes como os únicos interlocutores aceitáveis. No limite, tratou-se de mais um ritual institucional celebrado com palmadinhas nas costas.

Dias depois, a 23 de Junho, teve lugar no Museu do Aljube – Liberdade e Resistência um outro debate em torno da questão “Que História(s) contamos no espaço público?”. Promovido pela Djass – Associação de Afrodescendentes, este debate não foi divulgado com o propósito de ser o mais representativo de sempre. No entanto, a organização teve o cuidado de convidar oradores que introduziram o problema do museu dos “descobrimentos” no seu contexto social. Qualquer projeto museológico corresponde à construção de uma determinada narrativa sobre o passado e sobre a sociedade que os seus promotores desejam viver. Deste modo, um determinado museu ou monumento está longe de ser uma necessidade óbvia, que apareceu do nada. É por isso que essas estruturas devem ser discutidas, criticamente, da forma mais ampla possível. É também por isso que, antes de nos propormos a criar um museu ou um monumento, reflitamos sobre o tipo de sociedade que queremos neles projetar. Um museu da “descoberta”, da “viagem” ou afins será necessariamente um museu herdeiro das grandes narrativas. Significativamente, nenhum dos oradores do debate do ICOM esteve presente.

Não é coincidência que um museu desta natureza seja proposto num contexto em que há uma variedade de vozes cada vez maior no espaço público. Essas vozes são de afrodescendentes, imigrantes, mulheres e filhos de famílias que estavam tradicionalmente circunscritas às fábricas e ao mundo rural. Mas essas vozes correspondem também a uma geração de jovens que é a mais qualificada e internacionalizada de sempre. No seu conjunto, estes agentes têm sido sistematicamente afastados dos espaços institucionais em que se definem políticas museológicas, e da gestão dos próprios museus. Com efeito, a mudança e as transformações sociais amedrontam muita gente.

Num artigo recentemente publicado neste mesmo jornal (28 de Junho), Luís Raposo alerta para os perigos do “radicalismo” das vozes que assomam agora no espaço público e questionam a grande narrativa nacionalista proposta para um museu. Raposo procura legitimar a sua proposta para um museu da “viagem” rejeitando a herança nacionalista do Estado Novo, para logo depois evocar a cartilha luso-tropicalista mais primária. Essa narrativa, promovida à exaustão a partir da década de 1950, foi tão normalizada que passa em textos deste tipo sem qualquer citação. Mas o mais preocupante é a irritação que o questionamento dessa cartilha provoca em Luís Raposo, que não hesita em menorizar a antropologia e historiografia críticas contemporâneas, associando-as ao “MRPP” e a “académicos de raiz anglo-saxónica”, que vê espelhados no “domínio estrangeiro” que pretende combater com o seu museu “patriota”. Se não fossem o título e data na primeira página do jornal, diria que tínhamos voltado a 1971 e que Luís Raposo estaria a bradar n’A Época contra terroristas e estrangeirados que pretendem eliminar a singularidade de Portugal no mundo.

A externalização das questões e leituras críticas feitas às propostas para o museu em causa, marcando-as como estranhas ao sujeito nacional e etiquetando-as como radicais, é a maneira que Luís Raposo encontrou para marcar uma determinada ordem. Infelizmente, a radicalização discursiva dos adversários sempre foi um instrumento de quem está do lado do poder e que pretende assim eliminar os seus interlocutores. No presente contexto, esses interlocutores são as centenas de pessoas que têm vindo a subscrever documentos públicos contra o tal museu, exigindo mais reflexão e uma abertura maior a perspetivas alternativas. Refiro-me concretamente às cartas de académicos (Expresso, 12 de Abril), de agentes culturais e científicos (PÚBLICO, 22 de Maio) e da comunidade afrodescendente (PÚBLICO?, 22 de Junho). Falo também das muitas pessoas que vão partilhando as suas opiniões nos debates, nas redes sociais e nos círculos mais íntimos. Este é um país muito diferente do que Luís Raposo e os luso-tropicalistas pretendem construir no espaço público, mas ele é certamente um país mais diverso e democrático.

Já não vivemos no tempo dos argumentos de autoridade. As palmadinhas nas costas pertencem agora ao mesmo lugar que o falhado museu da “viagem”. Vão Luís Raposo e amigos descobri-lo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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