Quando um Bolsonaro bolça

É esta “pessoa” já acusada de racismo pela Procuradora-Geral da União e que enfrenta julgamento no Supremo Tribunal Federal por apologia à violência e racismo que dirigirá o colossal Brasil?

“Até sou favorável à tortura e o povo é favorável a isso também”. Quanto a impostos, “eu sonego tudo o que for possível”. Se fosse eleito Presidente da República, “daria golpe no mesmo dia, fecharia o Congresso”, “parte logo para a ditadura”, “nesse período [da Ditadura Militar] só desapareceram criminosos”. “Através do seu voto não muda nada; só muda no dia em que partirmos para uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez”; “se vai morrer alguns inocentes, tudo bem”. “Votei contra os direitos trabalhistas das empregadas domésticas porque leva ao desemprego”. “Você vai se dar mal”, dirigindo-se à jornalista Maria Cassia e simulando um revólver com a mão. “Minorias tem de se calar, se curvar à maioria. Acabou”. Sobre o “Massacre do Carandiru” (1992): “acho que a Polícia Militar perdeu uma grande oportunidade de matar mil bandidos”. “Se o seu filho andar com baderneiro, vai virar bandido. Se andar com gay, vai virar “boiola”. Se eu tiver de dar um couro nele para evitar problema, vou dar”. “Jamais iria estuprar você porque você não merece”, dirigindo-se à deputada Maria do Rosário do PT, chamando-lhe “vagabunda”. À pergunta “se o seu filho se apaixonasse por uma negra, o que faria?”, responde “ó preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco porque os meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu”. “Se eu vir dois homens se beijando na boca, vou bater”. “Deixar que o homossexual entre nas escolas, não admito”. Ligação entre a homossexualidade e a pedofilia e sobre a adopção por casais do mesmo sexo, nem pensar “porque a criança vai virar gay”. “Ainda bem que eu levei umas palmadas; meu pai me ensinou a ser homem”. “Não entraria num avião dirigido por um negro, nem operado por um negro”. “Os afrodescendentes não fazem nada. Eu acho que nem para procriar servem mais”. “As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”. À pergunta “qual é o seu guru na política”, responde “os generais que foram Presidentes da República na Ditadura Militar”.

Estas palavras foram proferidas por Jair Messias Bolsonaro entre as décadas de 1980 e a actualidade. Não são retiradas de qualquer ideário dos regimes fascistas e autoritários da época da II Grande Guerra nem da Idade Média. Falamos de um capitão na reserva, de 63 anos, que militou, por ordem cronológica, no PDC, PP, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e, agora, no PSL – Partido Social Liberal, que o acaba de escolher como candidato às próximas eleições presidenciais brasileiras, como leio no PÚBLICO. Ao discurso um pouco menos alinhado de Janaína Paschoal, refreando o pensamento único, a horda de seguidores reagiu desagradada. Conheci esta professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), em trabalho, quando lá me desloquei, e confesso que do breve contacto que com ela tive me ficou uma boa impressão que o tempo se encarregaria em transformar em péssima, seja do prisma do impeachement de Dilma, das lágrimas de crocodilo e agora – pasmado – em face da potencial aceitação da candidatura a Vice de Bolsonaro. Envergonha os pergaminhos de defesa do Estado de Direito que caracterizam a Escola de Direito Penal da USP, que tanto respeito.

O que está escrito no primeiro parágrafo são factos. Notórios. Indesmentidos e indesmentíveis. É esta “pessoa” que os brasileiros querem como PR, ainda por cima num sistema político presidencialista? Um saudoso do período da Ditadura Militar ou Quinta República (1964-1985) que, durante mais de vinte anos, torturou, censurou a imprensa, permitiu que se aprovasse legislação em que os cidadãos eram detidos sem motivo e sem prazo? É esta “pessoa” já acusada de racismo pela Procuradora-Geral da União e que enfrenta julgamento no Supremo Tribunal Federal por apologia à violência e racismo que dirigirá o colossal Brasil?

Ninguém ignora, em particular depois dos últimos anos tão conturbados da vida daquele país, que a população quer ordem e segurança. Mas essa “ordem” será trazida por uma ditadura machista, intolerante, misógina, violadora das mais fundamentais garantias de um Estado de Direito? E os militares que se vêm escondendo na sombra de vários políticos e que, desde o fim da ditadura parecem querer regressar ao passado? Vão sair dos quartéis e substituir uma classe política em geral corrupta por um conjunto de uniformizados alegadamente impolutos? A divisa “ordem e progresso” explica-se pelo movimento positivista e tem aí o seu sentido muito exacto. Com Jair, “ordem” será autoritarismo e militarismo. E o progresso – económico e civilizacional – onde está? Bolsonaro diz que está na limpeza da sociedade de todos os políticos que comem da gamela. O Brasil precisa de uma refundação, mas nada de bom sai de uma nova vida hasteada na repressão, na obliteração de liberdades fundamentais e na intransigência do pensamento de rebanho.

O populismo em todo o seu esplendor, ali tão próximo de Trump e a estabelecer pontes com a Europa representada pela Hungria, Itália, Áustria e Polónia, sem ser exaustivo. A “banalidade do mal”, de Arendt, nunca foi tão actual depois da II Guerra como nos nossos dias. O mundo já é outro e o “episódio Bolsonaro” é apenas mais um em direcção a um precipício colectivo em que se acena com a ordem e a segurança em troca da liberdade. Como se um mundo justo e equilibrado se pudesse construir desta forma: com muros, barreiras comerciais, com um emparcelamento ideológico e um reforço das fronteiras a todos os níveis – as mais perigosas são as mentais e não as físicas.

Brasil, para onde caminhas tu, gigante adormecido, grande por natureza? As sondagens dizem que Bolsonaro está na dianteira, o que significa que não reúne somente apoio da extrema-direita e da elite de coronéis e empresários que pretende explorar ainda mais a generalidade dos “pretos e pretas”. Também estes últimos se preparam para votar nele, apesar de o capitão lhes cuspir na cara. Estarão fartos da bagunça dos corredores do poder e das favelas. Se os demais partidos não formarem uma aliança que preserve o básico da civilização, tudo indica que Bolsonaro será um compincha de Trump. Mais perigoso, contudo, pois o Brasil não conta, apesar de tudo, com os freios e contra-freios do sistema norte-americano.

Quando um povo cede ao populismo autoritário, vende a sua alma e entrega o seu destino na mão de supostos iluminados. As promessas de bem-estar rapidamente se convertem em mais desigualdade e a segurança, essa, fica apenas e tão-só reservada para os suspeitos do costume.

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