O Airbnb já mora no "bairro do Siza"

O Airbnb já mora no "bairro do Siza", no Porto. Ideal furado de um projecto com assinatura Pritzker ou mudança normal dos tempos? Os moradores estão divididos

Foto
NELSON GARRIDO

Mais de 40 anos separam o Bairro da Bouça de hoje dos primeiros parágrafos da sua história, testemunhada por Orquídea Santos, traje insubmisso de quem quer mudar o mundo vestido. A luta daqueles anos, com Portugal entre a ressaca de um regime totalitário e a janela escancarada de uma liberdade desconhecida, era também pela habitação. Um pouco por toda a cidade do Porto, por todo o país, o povo aprendia o significado da palavra Direito, substantivo até então estranho, e reivindicava-o para ele. Naquele terreno, entre a Rua da Boavista e a Rua das Águas Férreas, sonhou-se alto — e talvez por isso a mágoa de Orquídea se tenha feito grande ao ver o destino fazer-se por outras rotas. “Uma coisa é quem esteve na luta, outra é quem esteve na janela a ver lutar”, diz depois de uma recusa inicial em falar, não fosse a emoção dar para palavras pouco simpáticas: “Isto não é aquilo por que lutei, o bairro era para os moradores.”

A conversa é sobre os apartamentos do bairro desenhado nos anos 70 por Siza Vieira agora utilizados para alojamento local — e isso é coisa para deixar Orquídea Santos alterada. O “desabafo” vai para lá do problema dos turistas-moradores-temporários. Essa é, na verdade, a consequência do que há longo tempo vai percebendo por ali: “Houve muito negócio paralelo”, acusa, e foi na compra para outros fins que não a residência fixa que o fósforo se acendeu. Delfim Mendes Vieira, cabelo branco e olhar sereno, ouve atento a análise de Orquídea. Mora no bloco dois do bairro da Bouça desde o início e sabe bem do que se fala. Mas percebe o mundo em mudança e faz as devidas separações nas denúncias. Também ele se apoquenta quando vê gente a tirar lucro de um projecto com desígnios diferentes, mas sabe que entre quem o faz também estão aqueles que emigraram, às vezes a fintar o desemprego, e não tinham outra solução que não arrendar a casa.

No apartamento ao lado, Delfim Vieira vê os vizinhos mudar com frequência. Não são turistas, mas sim estudantes, quase sempre estrangeiros e de passagem pela cidade por pequenos períodos. E essa “juventude barulhenta” vai-lhe dando algumas dores de cabeça: “Já me tenho levantado de noite para os mandar calar”, conta. “Mas à parte isso não me importo, até gosto de os ajudar. E de ensinar os turistas a ir para o metro e contar a história do bairro.”

Foto
Não se sabe quantos apartamentos já estão destinados a alojamento local Nelson Garrido

Nascido como projecto social, ainda com a promoção do Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), e feito regime de cooperativa mais tarde, o bairro mostrou desde sempre vocação de palco turístico à boleia de uma assinatura de Pritzker. A Bouça — que continua a ser chamada de bairro, ainda que não o seja efectivamente — tornou-se uma obra icónica da cidade e parte de alguns roteiros turísticos. “São camionetas de pessoas a chegar aqui para visitar o bairro”, comenta a moradora do bloco 1, Laurentina Rebelo. Vão em excursões organizadas por escolas de arquitectura ou sozinhos. Levam máquina fotográfica, caderno de apontamentos e de desenho. E alguns descobriram nos últimos anos uma outra possibilidade: a de arrendar um apartamento e fazer do “bairro do Siza”, como muitos moradores lhe chamam, a sua casa temporária.

Uma pesquisa rápida no site de alojamento local Airbnb devolve pelo menos três fracções. E todos sabem rentabilizar a assinatura do projecto: “desenhado por Siza Vieira”, lê-se no título de um dos anúncios; “um projecto de referência para os amantes da arte”, descreve outro. A situação já chegou às reuniões de condomínio — e agora que o Parlamento aprovou alterações à lei do alojamento local deverá ser tema ainda mais recorrente. E de difíceis consensos.  

António Regedor, um dos três administradores do condomínio do conjunto habitacional da Bouça, admite a existência de alojamento local no espaço, mas não tem ideia da dimensão e antiguidade do “fenómeno”. As mudanças na legislação dão mais poder ao condomínio, que pode vetar a existência de alojamento local se a maioria dos proprietários das fracções se opuser a essa actividade e se comprovada a “prática reiterada de actos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como causem incómodo e afectem o descanso”. Mas essa possibilidade — bem como a de os condóminos reclamarem uma contribuição adicional de 30% — parece-lhe, na prática, difícil de levar avante.

Para António, o alojamento local veio até trazer mais “diversidade” ao bairro, onde já co-habitam os primeiros residentes (alguns oriundos das ilhas do Porto e zonas carenciadas), uma segunda vaga composta por muitos arquitectos, designers, professores e estudantes, e as zonas comerciais (há quatro gabinetes de arquitectura, uma livraria especializada, entre outros). Mas o lado b dessa multiplicidade veste também a incerteza: e se o crescimento de Airbnb se descontrolar? Para já, António tem percebido na Bouça duas atitudes em relação ao alojamento local. “As pessoas mais velhas mostram alguma apreensão, vêem gente de cara diferente todos os dias, têm receio de deixar as portas abertas, sentem-se inseguras”, começa. “Os mais novos e cosmopolitas não têm tanto essa percepção negativa, até porque alguns também já estiveram nesse papel noutros países.”

Foto
Fernando Cardoso e António Regedor são administradores do condomínio no bairro da Bouça Nelson Garrido

Na cadeira ao lado, Fernando Cardoso, também administrador e morador da Bouça desde o primeiro dia, abana a cabeça incomodado. “Só pergunto: se isto foi construído para habitação própria com fundos do Estado por que razão está a ser usado para arrendamento?”, atira peremptório para logo regressar às primeiras linhas da história: “Desde que isto foi para a frente, com a associação de moradores da Bouça, pensava-se que as casas iam ser para os sócios e filhos dos sócios. A expectativa era outra.”

O som da campainha traz Henrique Rebelo à porta, no bloco quatro do bairro, o mais próximo do metro da Lapa. Pelo estreito corredor que dá acesso à sua casa passam com frequência turistas de trolley na mão, dia e noite, a caminho do apartamento que por ali está reservado a turistas. É um T3, às vezes arrendado a três casais, às vezes com filhos, e isso faz com que se note “mais ruído”, aponta, mas nada de tirar o sono ao médico de 36 anos, casado e pai de dois filhos de um e três anos. “Não me causa grande transtorno”, avalia, ainda que perceba o receio de quem anda por ali há mais anos. “Havia um sonho de construir um bairro de interajuda, onde todos os vizinhos se conhecessem. E essa identidade perde-se um pouco. Mas os meus filhos ainda brincam nos pátios e no jardim do bairro, às vezes com os filhos dos turistas.”

A beleza da Bouça não vem só da “marca Siza”. Chega dos nomes decorados dos vizinhos, da pergunta de cumprimento que espera resposta, das portas por trancar, dos fins de tarde sentados na escadaria desenhada por Siza como uma espécie de bancada com vista para os relvados centrais do bairro. A conversa entre Orquídea Santos, Delfim Vieira e José Ribeiro, fundador da Associação de Moradores da Bouça, ronda esse ideal de um dia sonhado. As malas de um casal de turistas fazem a melodia de fundo com as rodinhas a percorrer o paralelo. Estão de passagem, olhos nos blocos brancos e telemóveis ao alto. E Orquídea finaliza a conversa que nem queria inaugurar: “Não era tão bom que isto fosse para os moradores?”, pergunta a juntar um cheirinho de optimismo — “A história não é irreversível, o Siza desenhou isto para os trabalhadores liberais e isso ainda se vai cumprir.”

Sugerir correcção
Ler 6 comentários