Atiras lixo para o mar? Mais dia menos dia ele vai parar à tua mesa

Mergulha nas profundezas do oceano em busca de beleza, mas o mar devolve-lhe também um filme de terror. Sónia Ell fotografa o lixo marinho e quer levar as provas do que encontra às escolas. Só as novas gerações nos podem salvar, diz.

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Corais de pedra, recifes de corais, água, subaquática
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de praia
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Em matéria de lixo marinho e suas consequências, “isto é um bocadinho como o carma” — “a gente manda para longe mas ele volta”. A imagem é usada por Sónia Ell, com as devidas reservas de crenças, para falar do “grave problema” de poluição dos oceanos: “Mandamos o lixo para o mar, mas mais cedo ou mais tarde ele vem-nos parar à mesa.” Palavra de mergulhadora, que anda desde 2015 a recolher provas fotográficas do plástico que encontra no oceano, ao largo dos Açores, e quer levar esse testemunho às escolas: “É preciso alertar as gerações mais novas, são elas que podem reverter o que as gerações do meu pai e do meu avô fizeram.”

O projecto +1=-1 é a “herança” que Sónia Ell, 44 anos, aspira deixar ao planeta. “Quero dizer às crianças que mais um significa menos um”, explicou ao P3 numa conversa telefónica: “Se pusermos mais um plástico no mar é menos um que podemos reciclar e mais um destruído com a erosão natural que vem parar à mesa.” A consciência ambiental foi-lhe entrando pela casa enquanto menina, ganhou dimensão quando se tornou mergulhadora (com o objectivo de combater o medo da água com algas e chegar mais perto da sua enorme paixão, os tubarões), e teve o clique definitivo no momento em que assistiu ao documentário Racing Extinction, onde se revelam imagens perturbadoras de espécies em perigo. “Ainda nos esquecemos muitas vezes das consequências dos nossos actos.”

Desde os anos 80 que Filipe Mora Porteiro, director regional dos Assuntos do Mar do Governo Regional dos Açores, vem notando o aparecimento de lixo e plástico na costa. Mas nessa altura, este era ainda um “problema menor”. Com o passar dos anos, o dilema foi crescendo e tornou-se preocupação política. No terreno, há vários projectos que procuram “minimizar” uma dor de cabeça ambiental que vai muito para lá das fronteiras das ilhas açorianas e se torna, por isso, difícil de contornar. “O lixo marinho de origem endógena, produzido nas ilhas e pelas frotas locais, está a diminuir”, aponta, para logo de seguida ir ao ponto principal: “É difícil avaliar a tendência global, mas parece-me que há mais lixo. Ainda não se tomaram medidas globais que consigam inverter esta tendência.” 

O Plano de Acção para o Lixo Marinho nos Açores (PALMA) congrega diversas entidades e iniciativas que abordam o problema em distintas perspectivas: há, por exemplo, campanhas de recolha e monitorização de lixo costeiro e subaquático, acções de sensibilização da população e junto de pescadores e desportistas náuticos. Só entre final de Maio e de Junho houve 25 campanhas de limpeza em todas as ilhas, envolvendo centenas de voluntários. E as ilhas estão também a ser equipadas com centros de triagem e pontos de recolha selectiva, de forma a minimizar a entrada de resíduos no meio marinho.

Sempre que vai à praia, Sónia perde algum tempo a limpar alguns metros quadrados de areal. Como mergulhadora, pensa sempre duas vezes antes de apanhar qualquer objecto. Talvez nunca tenham pensado nisto: “No fundo do mar, uma garrafa pode tornar-se o habitat natural de um animal. Se retirar uma garrafa posso trazer lá dentro um polvo bebé, por exemplo, que é tão pequeno que não se vê.”

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Sónia Ell, 44 anos, começou a fazer mergulho para combater o medo da água com algas e para chegar perto da sua grande paixão: os tubarões Ana Marques Maia

Na areia e na água, à tona ou nas profundezas, Sónia encontra de tudo. Chinelos, carrinhos de supermercado, brinquedos, embalagens de comida, garrafas, escovas dos dentes, coisas muito grandes e partículas já minúsculas, provavelmente em processo de erosão há anos, redes fantasma perdidas no fundo do mar e a “pescar animais eternamente”, matando-os.

Para debaixo de água, Sónia levava uma máquina fotográfica e ia “fazendo prova” do que via. Mostrava-as aos amigos e familiares, espantada e revoltada, mas não fazia montra com o problema. O projecto +1=-1 foi o salto que lhe faltava: Sónia Ell não tem aspirações na área fotográfica, mas quer usar as provas em formato de pixel para fazer passar uma mensagem que de outra forma talvez não fosse eficaz. Uma espécie de “ver para crer” com um número impressionante que Sónia, directora de uma joalharia de luxo em Lisboa, nunca deixa esquecer: “Em 2050 teremos mais plástico do que peixe no mar”.

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Sónia Ell

O problema ganhou notoriedade sobretudo “a partir de 1997, quando foi descoberta a grande mancha de lixo do Pacífico Norte”, recorda a bióloga e investigadora em microplásticos e lixo marinho, Paula Sobral. A bordo de um catamarã, o oceanógrafo californiano Charles J. Moore encontrava uma ilha de plástico flutuante no oceano e levava o assunto à comunicação social e mais tarde à comunidade científica. Mais recentemente, o enfoque colocou-se nos microplásticos, “que são provavelmente o que representa o maior impacto no ecossistema marinho e no ser humano”, diz ao P3. “Como são partículas muito pequenas que podem ser invisíveis, os microplásticos podem ser ingeridos. Já foram detectados em vários alimentos humanos e todos os animais marinhos de alguma maneira acabam por ingerir partículas de plástico e fibras.”

A poluição dos oceanos é, ainda assim, um problema “muito desigual”. Confrontando a costa portuguesa com a da Ásia, por exemplo, estamos incomparavelmente melhor. Nos Açores, como na Madeira, a exposição é maior: “Na zona central dos oceanos existe uma acumulação maior de lixo marinho. A dinâmica de circulação global oceânica faz com que nessas zonas se encontrem uma espécie de pequenos vórtex que acabam por concentrar no seu interior aquilo que está a flutuar.”

Para Paula Sobral, coordenadora do projecto pioneiro “Poizon - Microplásticos e poluentes persistentes. Uma dupla ameaça à vida no mar”, a população está até “bastante atenta” ao problema. “Mas isso vale o que vale, porque não corresponde de maneira nenhuma a uma mudança de hábitos”. A solução, acredita, passa por “um conjunto de medidas partilhadas por vários sectores da sociedade, consumidores, indústria” — incluindo algumas “imposições, de banir ou substituir determinados materiais”.

É um caminho lento, mas tem de ser iniciado “já”, diz Sónia Ell: “A humanidade já esgotou o seu crédito”. Entre o trabalho na joalharia de luxo e a actividade amadora de fato de mergulho, Sónia vai continuar a construir a sua herança: “Acredito que se salvarmos um coração salvamos a humanidade. Sou optimista: a pouco e pouco chegamos lá.”

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