A defesa europeia entre a NATO, a neutralidade e o federalismo

É impossível separar a Rússia do espaço geopolítico europeu. Por isso, assegurar os legítimos interesses de defesa do Leste europeu sem alimentar a lógica de inimigo russo é uma prioridade da defesa europeia.

1. No actual contexto político internacional, de divisões profundas na relação transatlântica, impõe-se pensar em alternativas para a defesa europeia. Como anteriormente notado (ver “O preço do ‘outsourcing‘ da defesa europeia” in Público 15/07/2018), é mais fácil identificar o problema do que apontar um outro caminho que seja coerente, credível e praticável. Não vou aqui abordar a questão das ameaças no espaço geopolítico europeu e no mundo envolvente, tais como a instabilidade no Mediterrâneo Sul e Oriental, a proliferação de armamento nuclear, químico e biológico, os ciber-ataques, o terrorismo, o islamismo-jihadista e outras. É sem dúvida uma questão fundamental, mas necessita de uma análise e discussão própria, até para avaliar em que medida tais ameaças necessitam de uma resposta militar, ou esta é desadequada. Neste texto vou analisar apenas, de forma tentativa, hipóteses alternativas ao modelo da NATO tal como actualmente está configurado, sendo o referencial da análise a União Europeia. As possibilidades que vou tratar são as seguintes: (i) a criação de uma política de defesa integrada numa União Europeia federal; (ii) a transformação da União Europeia numa entidade neutral; (iii) uma reconfiguração da NATO com a defesa europeia garantida por europeus. Por último, analisarei ainda as relações europeias com a China e a Rússia, sob o prisma da defesa.

2. Importa deixar bem claro à partida: o primeiro problema da defesa europeia resulta da própria complexidade e incoerência política da Europa. Ao contrário dos EUA, da Rússia e da China — entidades estaduais unificadas e dotadas de soberania — a Europa não tem essa coerência política. Nem a Europa (geográfica), nem mesmo a União Europeia — se simplificarmos a questão usando-a como referencial da discussão sobre a defesa europeia —, têm subjacentes uma entidade política com competência abrangente similar a um Estado soberano. Na União Europeia as competências de segurança e defesa são fundamentalmente nacionais, apesar de existir uma política comum nesta área. Todavia, não há transferências de soberania em matéria de segurança e defesa, como, por exemplo, no comércio, ou na moeda (na zona euro). Ao mesmo tempo, a União Europeia integra quatro Estados neutrais — Irlanda, Áustria, Finlândia e Suécia — que, pelo estatuto da neutralidade, não podem fazer parte de alianças militares. Esta complexidade e diversidade é um primeiro obstáculo a uma abordagem coerente e credível face ao mundo exterior, nomeadamente na relação com as três maiores potências militares da actualidade: os EUA, a Rússia e a China.

3. No plano dos princípios, a melhor solução seria a criação de uma política de defesa integrada pela União Europeia. Teoricamente, as actuais circunstâncias, de divisões transatlânticas e de desinteresse do actual presidente dos EUA pela NATO, favorecem-na. Mas há um problema circular extraordinariamente difícil de romper (a não ser na teoria/utopia): sem federalismo político não é possível construir uma defesa europeia integrada, pois a soberania mantém-se nos Estados nacionais; ao mesmo tempo, uma defesa europeia integrada (um “exército europeu”) também nunca poderá existir sem federalismo. Na União Europeia, por razões de soberania na defesa nacional, não é possível usar todas as capacidades e recursos existentes como se estivéssemos dentro de um mesmo Estado europeu. Um usual argumento europeísta-federalista é o de que os Estados-membros da União Europeia, mesmo gastando quase todos abaixo de 2% do PIB, afectam já, no seu conjunto, um valor que supera o de grandes potências como a Rússia e China (em termos absolutos, não em relação ao PIB). Mas esse número é uma mera adição da totalidade das despesas nacionais. Como já explicado, os seus efeitos só poderiam ser comparáveis à despesa militar da Rússia ou da China numa lógica integrada de Estado (federal). Com esse argumento, os europeístas-federalistas incentivam, assim, os europeus a seguirem a via federalizadora. Mas a solução enfrenta um poderoso obstáculo democrático. Não existe uma Europa federal porque a grande maioria das populações europeias não quer essa solução. E em democracia a vontade das populações tem de ser respeitada. Não pode ser evadida por lógicas tecnocráticas, nem por uma “integração furtiva” como tem sido feito, alimentando a revolta populista. A solução para a defesa europeia terá então de ser encontrada fora do federalismo, pelo menos no futuro imediato.

4. A solução da neutralidade atrai alguns espíritos mais idealistas e outros não tão idealistas. A neutralidade europeia seria a concretização última do ideal da “paz perpétua” kantiana. Estaria em plena coerência com ideia da União Europeia como um benévolo “soft power” — um novo tipo de actor político que rejeita o “hard power” das grandes potências tradicionais e a perfídia da “realpolitik”. A reforçar o argumento é normalmente apontado o caso dos já referidos quatro Estados neutrais da União Europeia. Ideais à parte, é fácil demonstrar que não é uma solução adequada para a defesa europeia. A neutralidade é um estatuto de Direito Internacional onde um Estado que se declara neutro se abstém de tomar partido em conflitos político-militares e participar em alianças. A sua política externa é a de manter a neutralidade diante de conflitos actuais e/ou futuros. Espera, naturalmente, que os outros Estados respeitem a sua neutralidade. Mas isso é a teoria. A história mostra que pode não ser assim se o seu território for um local adequado para manobras militares, ofensivas ou defensivas. Casos como o da Bélgica, durante a I Guerra Mundial, que, apesar da sua neutralidade, foi invadida, não deixam grandes dúvidas. (Ver Encyclopaedia Britannica, “Neutrality”). No mundo actual, transformar a União Europeia numa imensa Suíça — o caso maior sucesso de neutralidade — é apenas um ideal/utopia. Nem a geografia da União Europeia é a da Suíça (que está protegida por fronteiras naturais montanhosas e longe do mar), nem as ligações dos europeus ao resto do mundo permitem tal distanciamento/isolamento político-millitar, nem a pertença de Estados europeus ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, como membros permanentes (França e Reino Unido, apesar deste último estar de saída da União), são compatíveis com a neutralidade. Na prática, o apelo sedutor da neutralidade significaria enfraquecer e vulnerabilizar (ainda mais), a União Europeia.

5. Face à inadequação das alternativas anteriores, uma reconfiguração da NATO onde a defesa europeia é fundamentalmente garantida por Estados europeus (leia-se da União Europeia), reduzindo as necessidades de recurso a infraestruturas e equipamentos militares norte-americanos, é a única que parece viável no futuro imediato. A previsível saída do Reino Unido da União — o Estado europeu com mais capacidades militares — trouxe adicionais dificuldades a um problema já complexo. Ainda não é claro em que medida os britânicos vão continuar ligados ao resto da União Europeia. Em qualquer caso, importa ter em mente que a NATO é, cada vez menos, uma Organização do Tratado do Atlântico Norte. Não é uma questão de coerência, ou falta dela, face ao nome original, mas de perceber o impacto geopolítico dos seus alargamentos. Nos seus primórdios apenas a Itália — mais tarde Grécia e também a Turquia — exorbitavam da área Atlântico Norte. No pós-Guerra-Fria mais de uma dezena de Estados aderiu a esta. Todavia, dos novos membros, apenas a Polónia e os Estados Bálticos têm uma dimensão inequivocamente atlântica. Os restantes são do Centro e Leste europeu, com alguma preponderância dos Balcãs. É outra área geopolítica com as suas próprias questões de segurança e defesa. Para além destes desenvolvimentos no continente europeu, o mundo está a recentrar-se na Ásia-Pacífico. Um continuado interesse dos norte-americanos pela NATO provavelmente passará por reconfigurá-la também como uma aliança militar apoiando os EUA globalmente, em potenciais conflitos noutras partes do mundo, especialmente na Ásia-Pacífico. Resta saber se isso será do interesse dos europeus.

6. Há ainda a questão das relações com a China e a Rússia que é outra dimensão fundamental no actual mundo multipolar. No caso da China — e para além dos aspectos estritos de defesa —, esta parece ser vista, por muitos europeus, como possível aliada para garantir a globalização e a ordem liberal contra as investidas de Donald Trump. (Ver “EU and China edge closer in Trump's 'America First' world” in EUObserver, 13/07/2018). Tal ideia mostra a confusão estratégica instalada entre os europeus na sequência das divisões transatlânticas. A China não é liberal em nenhum sentido da palavra. Pretender preservar a ordem liberal internacional aliando-se à maior potência capitalista autoritária do mundo é um absurdo. Ou então é uma cínica “realpolitik” que descredibiliza os valores democráticos-liberais europeus. A China usa instrumentalmente a ordem liberal internacional para robustecer a sua economia e aumentar o seu poder, incluindo militar. (Ver “How the West got China wrong” in The Economist, 1/05/2018). Beneficia de uma abertura desigual dos mercados que conseguiu na OMC, a partir de finais dos anos 1990, por miopia estratégica e ganância ocidental. Isso tem-lhe permitido aumentar, drasticamente, o poder económico-político-militar. Muitos europeus não se apercebem que existe uma estratégia chinesa de deliberado “low profile”, de esconder as suas capacidades, de não reclamar a liderança para não criar contrapoder, esperando o tempo certo para actuar. (Ver ?“Deng Xiaoping’s ‘24-Character Strategy’” in Global Security, 28/12/2013). Quanto mais o peso da China se fizer sentir no mundo mais os valores democráticos-liberais irão retroceder. E os interesses fundamentais de defesa chineses pouco ou nada têm a ver com os europeus. No pior cenário, poderão até estar em rota de colisão.

7. Por último o caso da Rússia. Na Europa/Ocidente as discussões sobre a Rússia adquirem facilmente um tom emotivo e polarizado. Russófobos e russófilos digladiam-se de forma extremada. Em grande parte isso explica-se pelo passado da Guerra-Fria onde esta era o principal inimigo da Europa/Ocidente, mas também por ter sido uma referência ideológica incontornável do socialismo-comunista. Tudo isso deixou marcas profundas. Mas a Guerra-Fria terminou na transição dos anos 1980 para os 1990. No entanto, por razões históricas e geográficas, na maioria do Leste europeu, em especial na Polónia e nos Estados Bálticos, a Rússia continua a ser vista com grande desconfiança e como um potencial inimigo. Em claro contraste, na maioria do Sul da Europa ­— Grécia, Chipre, Itália, etc.—, a Rússia é vista sobretudo como um parceiro. Por sua vez, na parte mais ocidental da Europa tende a prevalecer a visão de um competidor estratégico mitigada também com a ideia de um parceiro, como se vê na Alemanha. Ao mesmo tempo, nos países e/ou sectores da opinião pública que olham com mais suspeição para a Rússia, Vladimir Putin é uma espécie de arqui-inimigo. Procura destruir a ordem liberal internacional. (Ver Molly K. McKew e Mark Hertling “Putin’s attack on the US is new Pearl Harbor” in Politico, 17/07/2018, https://www.politico.eu/article/putins-pearl-harbor-attack-on-the-us-is-our/). Tal quadro mental obscurece que a estratégia russa é sobrevalorizar o seu poder, o qual tem limites maiores do que parece porque não é suportado pela sua demografia e economia. (Ver Banco Mundial, “Gross domestic product 2017”). Mas a grande discrepância de percepções europeias — e as emoções exaltadas que a Rússia desperta —, tornam muito difícil uma política coerente e equilibrada face a esta. Em qualquer caso, é impossível separar a Rússia do espaço geopolítico europeu. A sua presença impõe-se na equação da segurança da Europa. Por isso, assegurar os legítimos interesses de defesa do Leste europeu sem alimentar a lógica de inimigo russo é uma prioridade da defesa europeia. Não há manual de instruções para isso. Necessita de pragmatismo político e de uma hábil visão estratégica.

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