Há uma empresa em Lisboa que luta contra a escuridão desde 1789

A Caza da Vellas mostra pelo nome que é antiga, mas soube adaptar-se à electrificação e ao movimento do tempo.

Luz, luminária
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Trolley, Transportes públicos
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Ouro
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Bebida destilada, Loja de garrafas
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História antiga, escultura em pedra
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História Antiga, Escultura
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Uva
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Garrafa de vidro
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Ainda fotografia da vida
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O relógio olha de frente quem entra na loja, marcando o tempo que teima em passar, mais ou menos devagar. De origem suíça, está ali desde os primórdios da loja, a Caza das Vellas. A ortografia é antiga, e serve como marca da antiguidade da empresa, criada em 1789 como atesta a placa colocada simbolicamente debaixo do relógio. Nasceu pelas mãos de Domingos de Saa Pereira de Mello, que a fundou a 14 de Julho desse ano, o mesmo dia em que se dá a tomada da prisão da Bastilha por cidadãos de Paris, marco da revolução francesa.

A coincidência da data torna-se ainda maior ao saber-se que foi de França que o empreendedor de origem transmontana trouxe o conhecimento de novas técnicas de fabrico de velas que lhe permitiram vingar na capital portuguesa, com alternativas ao sebo ao usar cera animal (de abelhas), mineral e vegetal, e ao introduzir cores. 

Quando Domingos de Saa Pereira de Mello escolheu a localização da loja, na rua Direita do Loreto, aquela zona tinha ainda vestígios do impacto do terramoto de 1755, e o Chiado ainda era conhecido como Largo das Duas Igrejas - a de Nossa Senhora do Loreto e a Igreja da Encarnação.

O século XVIII viu a profunda escuridão das noites começar a ser quebrada pelo azeite em termos de iluminação pública, enquanto nas casas dos lisboetas a luz vinha também, nesse século e no seguinte, do petróleo e das velas.

Uma factura de Outubro de 1879 (hoje guardada como documento histórico), quase cem anos depois da fundação da empresa, confirma o ofício, já com um toque de marketing e publicidade: “Cera manufacturada com a maior perfeição”.

Concorrência eléctrica

É nessa altura que a Caza das Vellas, que enfrentara com sucesso a concorrência directa, começa a perceber que tem pela frente uma ruptura no negócio: a iluminação a gás, a que se segue a electricidade, partindo de alguns locais públicos da cidade, como o Chiado – mesmo ali ao lado – e a avenida da Liberdade, até chegar ao interior das casas.

O movimento demorou décadas, mas colocou um ponto final nas velas enquanto produto essencial para a iluminação, surgindo empresas como a Companhias Reunidas Gás e Electricidade. Para trás ficavam episódios, transformados em marcos históricos da Caza das Vellas, como a iluminação de um concerto de Franz Liszt na capital ou da inauguração do Banco de Lisboa em 1820. Deste último já não há memória, ao contrário da empresa criada por Domingos de Saa Pereira de Mello, que encolheu de dimensão: se antes a morada ia do número 51 ao 55, com um longo balcão e três portas que davam para a rua, passou a contar com menos um número e o espaço correspondente (hoje, o 51 é um restaurante).

“Com o surgimento do gás, e depois da energia eléctrica, foi morrendo o interesse pelas velas de iluminação” conta hoje Luís de Sá Pereira, descendente do fundador, tal como a sua irmã, Margarida (a gerência é partilhada).

A conversa decorre atrás do balcão de madeira, objecto fronteira que ali está desde o início do negócio a ver passar cores e cheiros ditados por gostos e modas. “Mas mesmo assim”, acrescenta Luís de Sá Pereira “as pessoas continuavam a comprar velas, até porque entretêm. Fazem companhia e dão outro ambiente”. A religião também ajudou, seja por via de círios ou de velas para baptizados.

Negócio de resistência, a Caza das Vellas faz parte da lista das “Lojas com história” da Câmara Municipal de Lisboa e está em processo de classificação por parte da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). É a DGPC quem relata que na I Guerra Mundial “a loja inicia o negócio de figuras ou milagres” e que, anos mais tarde, “mecanizou a produção de velas, com novos equipamentos”. Isso levou a uma maior produção, com “custos mais reduzidos, não deixando de integrar um sistema manual de fabrico de velas, ao jeito manufactureiro”.

Velas feitas à mão

Luís de Sá Pereira começou a trabalhar na loja aos 16 anos, em 1967. “Para dar uma ajuda” recorda este arquitecto de formação, porque não foi aqui que fez o seu percurso profissional, tal como não o tinham feito antes o seu pai e o seu avô, ambos engenheiros electrónicos - a loja estava mais nas mãos do lado feminino da família. Só depois de se reformar, algo que aconteceu há cerca de oito anos, é que Luís de Sá Pereira passou a trabalhar a tempo inteiro na Caza das Vellas, mas, até então, esteve sempre um pouco por ali. Assistiu a um dos últimos grandes desafios, o do incêndio que atingiu a loja no início do anos 90 do século passado (devido a um curto-circuito), e por essa altura terminou também um ciclo iniciado por seu pai onde se apostava, com o apoio de maquinaria de origem alemã, em aumentos de produção, nomeadamente de velas brancas. “Não era o caminho mais adequado”, atesta hoje Luís de Sá Pereira, até pela concorrência que existia em locais como Fátima.

Hoje, vendem-se na Caza das Vellas cerca de 200 mil velas por ano, com a aposta a incidir na variedade e não na quantidade produzida, e onde se destacam as velas decorativas. O processo é manual, e com direito a pequenos segredos guardados na zona de manufactura que existe ao fundo da loja. Talvez por isso, Luís de Sá Pereira diz que a empresa não tem concorrentes, ou que se tem são cada vez menos. “Isto é artesanato, fazemos tudo à mão”, aponta Maria de Sá Pereira, mulher de Luís, e que no decorrer da conversa tem estado ao balcão a atender os clientes, nacionais e estrangeiros.

Guia-intérprete de profissão, Maria de Sá Pereira divide-se na loja entre o atendimento - é sempre bom tomar o pulso à clientela – e a produção, mais concretamente na vertente criativa. “Temos de pensar nas cores, nas formas, nas novidades. No que é que deve permanecer do antigamente”, explica, para depois acrescentar que “o passado é o que nos abre portas para o futuro”. “O importante é a criação de coisas novas, de ideias novas, é com isso que se capta o cliente”, acrescenta Maria de Sá Pereira. Isso pode ser feito por via de aromas - há velas com óleos essenciais de folhas de tomate, por exemplo – ou da apresentação - com paralelepípedos azuis preenchidos por traços vermelhos e com três pavios.

As velas aqui produzidas, garantem os seus proprietários, duram seis vezes mais do que as compradas em grandes cadeias de retalho. Um dos métodos utilizados é o da roda de pau santo, uma espécie de roda de carruagem pendurada do tecto onde se colocam os pavios – 100% de algodão – e depois, com o auxílio de uma enorme colher, vai-se colocando a cera. Esta vai aderindo ao pavio até atingir a espessura desejada. No chão da área de produção, uma tina de cobre com um líquido vermelho escuro mesmo ao lado da roda de pau santo mostra os vestígios da última criação, acompanhada de um odor suave, não identificável.

Antes de 1998, o ano da exposição mundial de Lisboa, havia uma aposta nas peças de maior dimensão, mas depois disso passou a dominar o pequeno formato, aquele é o dominante no turismo. Com presença em roteiros a nível internacional, do norte da Europa – é referida, por exemplo, no site da transportadora aérea Norwegian - ao Japão ou à China, chegam “verdadeiras revoadas” de turistas à loja. Muitos não compram, e apenas querem fotografar, mas há também outros que acabam por levar uma recordação – aqui já esteve, por exemplo, John Galliano, o estilista de moda internacional. E a melhoria da confiança e da economia portuguesa que se registou nos últimos anos deu um empurrão às contas da empresa, que conta actualmente com quatro empregados. Compram-se velas para decoração e dar ambiente, mas também velas para baptizados, com inscrição manual do nome e do dia. Neste caso, há também velas bordadas, com desenhos em relevo feitos com a própria cera e posteriormente pintados. O resultado é que “as vendas têm vindo a recuperar nos últimos dois anos”, dizem os responsáveis pela loja, que vai também tomando conta de algumas encomendas para o estrangeiro – adicionando assim uma componente exportadora para vários cantos do mundo, ainda que de reduzida expressão.

Na montra, à boleia dos santos populares, um Santo António prega aos peixes, entre os quais está um peixe-palhaço, a lembrar o Nemo. A um sábado de manhã, o movimento é quase constante, entre encomendas de velas de baptizados e estrangeiros, como um casal francês que leva consigo símbolos de uma Lisboa que ainda existe.

Numa loja histórica como esta, a ameaça está bem presente, e assume formas como a lei das rendas. O imóvel não lhes pertence - está nas mãos de uma família -  e tudo mudou com a chamada “Lei Cristas”, do anterior governo PSD/CDS, que alterou o regime de arrendamento, mexendo com os preços. Mesmo com as mudanças feitas depois, diz Luís de Sá Pereira, há uma incógnita após 2023, ano em que acaba o período de renda contida - e do qual beneficia por ser uma microempresa. A partir daí abre-se toda uma nova fase de negociações, e o risco de haver um ponto final na Caza das Vellas, conforme afirma o descendente do empreendedor transmontano do século XVIII.

Para já, o negócio vai-se fazendo de olhos postos no presente, mantendo a antiguidade como um activo e uma atenção aos custos. “Aqui”, diz Luís de Sá Pereira no meio da conversa, “combate-se o desperdício, até o do tempo”.

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