O automóvel vermelho-sangue

Trabalhava pela noite dentro. Amassava e juntava fermento. Na pausa da levedação, lia um vespertino ou Ferreira de Castro. Depois chegava a hora da cozedura. O calor do forno fazia transpirar. Pela madrugada o pão era distribuído. João era um padeiro exímio. Gostava do que fazia. Todos os dias cozia milhares de pães. Pela Páscoa fazia folares e pelo Natal enfeitava o bolo-rei a preceito.

Ainda jovem, deixou a aldeia e procurou o futuro em Lisboa. Dos pés descalços dos aldeões aos bairros pobres dos operários, a miséria era transversal. Profunda. Aos 17 anos, o padeiro exímio inscreveu-se clandestinamente no Partido Comunista Português. Nunca mais de lá saiu.

Deixou o calor dos fornos. De padeiro passou a operário na Celulose. Clandestino, recebia homens ao cair da noite em sua casa. Conspiravam. Organizavam. Saciavam a fome com enormes fatias de pão que João cozia num forno pequeno. Bebiam vinho. Noite dentro, os homens partiam cada qual na sua bicicleta. João também tinha uma. De corrida. Gostava de ciclismo. Quando as pernas começaram a ficar pesadas, decidiu tirar a carta de condução.

Salazar permitiu ténues importações da Checoslováquia. O Skoda construído no outro lado do muro chegou a Portugal. Barato e rijo, conquistou automobilistas. João também comprou um. Deixou a bicicleta. Mas a opção por aquele carro vermelho tinha uma razão. Uma só. Política. João, como tantos outros, sentia a falta de liberdade. Sentia a repressão. Conduzir um automóvel vermelho-sangue proveniente do idealizado mundo sem exploradores nem explorados, era um gozo íntimo. Uma provocação ao patético ditador.

O antigo padeiro adorava o seu automóvel. Mesmo perante uma fuga de água ou uma perda de travões, João achava sempre que era o melhor carro do mundo. Produzido por operários que eram donos da fábrica numa economia planificada, aquele carro vermelho-sangue era a sua bandeira. Nas vindimas, carregava cestos de cachos. Depois, pipas de vinho. O bagaço para o alambique. No Inverno, lenha para o fogão. Pelo meio, escondidos, muito bem escondidos, jornais Avante! ou propaganda subversiva. No Verão, tacho com arroz, tabuleiro com frango e garrafão de vinho para os piqueniques. Tenda de campismo, cadeiras e mesa. Colchões e mantas. Milho, batatas, cebolas, couves. E muita conversa proibida que o roncar do motor silenciava.

Na casa grande que recebia homens pela noite dentro reinava uma alegria contida. Abril do ano de 1974. O carro vermelho-sangue ficou parado uns dias. Como se estivesse alerta. Até que, numa manhã, João fez rodar a ventoinha amarela junto ao radiador, abriu as janelas e percorreu as ruas a buzinar de alegria. Outros entraram. Traziam bandeiras vermelhas. O Octavia Combi voava. Fabricado no outro lado da Europa sob o comando de bandeiras vermelhas, o carro vermelho-sangue sentia o valor da liberdade.

João deixou de ser clandestino. Na mala espaçosa eram transportados cartazes e baldes de cola. No tejadilho, cornetas com cabos ligados à bateria, ora gritavam palavras de ordem, ora apelavam à participação num comício. No capô, com fita-cola grossa, eram colados cartazes dos candidatos. E, lá dentro, condutor e passageiros festejavam a vida. Festejavam a democracia. E foi sempre assim. A liberdade a passar sempre por ali.

João foi envelhecendo. Todos os dias dava às chaves. O motor respondia como um relógio. As viagens começaram a ser mais curtas. Abria o vidro, apanhava o vento na cara e deixava-se ir, devagar, ele e o seu companheiro vermelho-sangue. Saboreava a vida. João sabia que tinha tido uma vida farta. Não passou pela Terra em vão. Aprendeu com o calor do forno. Lutou com a força da razão. E tinha o melhor automóvel do mundo.

Viu Gagarine a ver o mundo. Sentiu a Primavera de Praga. Chorou a prisão de Mandela. Abraçou a revolução. A morte não o deixou entristecer com o fim do país dos sovietes. Fechou os olhos, o velho padeiro. Agarrado à vida numa luta desigual. Fechou os olhos. A chave do tablier creme deixou também de rodar. O motor fez silêncio. Mas uns segundos antes de tudo isto, disse, com voz a teimar ser firme: “O Skoda é para o rapaz”.

O rapaz, neto do padeiro comunista, tirou a carta de condução. Durante anos desmanchou peça por peça o velho carro checoslovaco. Recuperou todos os componentes, deu brilho aos cromados e deu tinta nova ao vermelho-sangue. Com muito amor. Agora dá à chave e o motor continua a ser um relógio. Calça os sapatos do avô, carrega no acelerador com jeito, abre o vidro, e vai embalado com o vento na cara. Sente a história recente da humanidade. Sente o sorriso firme do avô. Sente que sem memória não existe futuro.

Gosto de sonhar contigo, avô!

Foto
Adriano Miranda
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