Longe dos holofotes, as crianças da gruta ficarão “no pequeno mundo que lhes importa”

O grupo de adolescentes preso numa gruta inundada na Tailândia ficou conhecido pelo mundo da noite para o dia. Agora, já fora do hospital, pede-se que a comunicação social respeite a privacidade das crianças para que possam recuperar e ter uma “vida normal”. Mas até que ponto é que a atenção mediática repentina pode afectar estes rapazes?

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Reuters/SOE ZEYA TUN

O grupo de rapazes resgatados na Tailândia saiu da gruta para enfrentar não só a forte luminosidade do exterior, mas também para encarar os sôfregos holofotes da comunicação social e da esfera pública. A curiosidade era muita: como é que lá foram parar, como é que sobreviveram, como se alimentaram, como pensavam sair de lá. Resta também saber quais os efeitos nos adolescentes de uma exposição mediática tão repentina: “As consequências são muito os adultos que as fabricam”, diz ao P2 a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos, considerando que tudo depende de caso para caso e que deve haver espaço para a subjectividade — algo que pode ser importante para os adultos acaba por ser desvalorizado pelos mais novos.

“O perigo que existe é o de essa atenção ser capaz de influenciar a forma como a criança se comporta ou como vê o mundo à sua volta”, esclarece o pediatra Paulo Oom, dizendo que isto pode afectar o seu comportamento, mas dificilmente influenciará o seu desenvolvimento psíquico. Ainda que isso não seja exclusivo dos adolescentes — acontece também com adultos — “uma criança tem menos maturidade e pode ser mais influenciada”. Já se fossem crianças pequenas acabariam por não se aperceber do que estava a acontecer, “não tendo qualquer repercussão positiva ou negativa”, garante o neurologista pediátrico Pedro Cabral.

Pouco antes da conferência de imprensa dada pelos 12 rapazes que pertencem a uma equipa de futebol e pelo seu treinador de 25 anos na quarta-feira — a primeira aparição em público logo após terem saído do hospital — o porta-voz do Governo tailandês, Sunsern Kaewkumnerd, dizia à AFP que o objectivo do encontro com a comunicação social era precisamente reduzir a curiosidade incessante, e que fossem feitas todas as perguntas que havia a fazer, “para que eles possam voltar para as vidas normais sem que os media os chateiem”.

“Não sabemos que feridas têm estas crianças nos seus corações”, argumentava o responsável do Ministério da Justiça tailandês, Tawatchai Thaikaew. Ao longo da conferência, foi reiteradamente pedido que a privacidade dos adolescentes fosse respeitada. Um médico apelou à imprensa que não incomodasse o grupo depois do encontro, já que é importante que passem tempo com a família; um psicólogo que os acompanhou vincou que tais interrupções perturbarão as suas hipóteses de terem “uma vida normal”.

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SOE ZEYA TUN/REUTERS

Pensar que essa atenção mediática pode arruinar as possibilidades de uma vida normal é exagerado, argumenta Paulo Oom. “Essa atenção vai acabar por deixar de existir e as crianças vão voltar à sua vida normal”. O essencial é que não se deixe, nesta primeira fase, “que a criança fique deslumbrada com toda a atenção e que não sinta falta dessa atenção de que foi alvo”, conclui. E, acrescenta Pedro Cabral, afastar-se das câmaras e dos microfones “faz parte do trabalho de reparação de danos que um susto destes provocou”.

Tanto que as perguntas que foram feitas pelos jornalistas durante a conferência de imprensa tinham sido analisadas previamente por uma equipa de pedopsiquiatras, de forma a evitar perguntas que pudessem perturbar os rapazes. Foram submetidas mais de 100 perguntas pelos jornalistas, mas só as que passaram o crivo dos especialistas foram ouvidas. “Foi uma questão de bom senso. Aquelas crianças sofreram no interior da gruta e tudo o que seja estar a remexer nesses sentimentos pode fazer com que a criança reviva experiências que não foram agradáveis”, explica Oom. 

Apesar dos pedidos, o grupo de rapazes foi acompanhado pela comunicação social numa visita a um templo budista em Mae Sai e um dos rapazes recebeu os jornalistas em sua casa. “Quando voltei para casa, havia tantas pessoas à minha espera, fiquei espantado”, disse à Reuters Duangpet Promtep, mais conhecido por Dom. Tinha até familiares que vieram da China para o ver. Contou ainda que vai criar uma nova conta no Facebook porque a anterior atingiu o número máximo de pedidos de amizade. 

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Dom e a sua tia, a quem chama de mãe SOE ZEYA TUN/REUTERS

Os rapazes eram desconhecidos quando entraram na gruta, mas quando saíram de lá já estavam a ser falados por todo o mundo — pela heroicidade e espectacularidade do resgate, por terem conseguido sobreviver em condições duras (só bebiam água das estalactites, tinham pouca comida), por estarem tão calmos numa situação complicada. “Mas o que lhes interessa é o pequeno mundo em que as pessoas vivem, o mundo das pessoas que são importantes para eles. O resto é uma entidade abstracta”, defende Pedro Cabral. Não acredita que a fama possa ter algum efeito psicológico negativo, até porque o motivo pelo que são conhecidos não é mau, não lhes dá má reputação. Há só o perigo de “a criança pensar que é o centro das atenções e que vai ser assim o resto da sua vida, debaixo dos holofotes, mas daqui a algum tempo já poucos se lembram”, completa Oom.

“Desconhecemos se isso depois vai ter algum grande impacto em termos de aquilo que a criança vai ser no futuro como adulto, isso ainda não está estudado, a única coisa que sabemos é que vai depender muito da envolvente da criança: dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus amigos”, reconhece o pediatra.

Mas o efeito desta exposição mediática pode não atingir um patamar tão grave quanto antes, observam os profissionais. “As crianças hoje estão muito expostas, até nas redes sociais, estão habituadas. E grande parte do seu comportamento também é determinado por aquilo que ela vai expondo e que vai vendo acontecer nos outros”, diz Paulo Oom. No caso dos rapazes na Tailândia, “a escala é muito maior, é para o mundo”. “Eles passaram um mau bocado, mas foram bem acompanhados por uma equipa que soube dar conta do recado nos piores momentos, não há motivos para pensar que vão ficar com sequelas”, acredita o neurologista pediátrico Pedro Cabral.

Mergulhadores, futebolistas e monges budistas

Na conferência de quarta-feira aparentavam estar felizes e recompostos, desdobraram-se em agradecimentos enquanto iam recordando histórias da gruta e se iam rindo com os amigos – como o adolescente que falava da sua comida preferida enquanto dormia na gruta ou quando viram a final do Mundial, já depois do resgate. Foram recebidos como vedetas, com segurança a preceito, grades que separavam os curiosos das crianças e câmaras constantemente apontadas às suas caras.

O momento de pesar foi quando falaram da morte do experiente mergulhador voluntário Saman Kunan, de 38 anos, que morreu durante as operações de resgate. Fizeram-lhe uma pequena homenagem em palco, elevando um quadro com a sua fotografia e mensagens escritas por eles, e o treinador Ekkapol Chantawong lamentou a morte e disse que se sentiam culpados por ela.

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O grupo também fez uma homenagem ao mergulhador no hospital PUBLIC HEALTH MINISTRY / HANDOUT

Quanto ao futuro, os rapazes partilharam sonhos de ser jogadores de futebol profissionais ou mergulhadores da Marinha, o que arrancou uma salva de palmas de quem assistia à conferência. Para já, planeiam ingressar temporariamente num templo para serem monges budistas noviços, uma prática comum na Tailândia para quem passa por situações complicadas – como a morte de familiares. Neste caso, serve também para homenagear o mergulhador que morreu enquanto os tentava salvar. “É muito importante que o façamos”, disse Dom.

Dul é outro dos rapazes que ficou preso na gruta. Tem 14 anos, nasceu na Birmânia, país vizinho, e fala quatro línguas: tailandês, chinês, birmanês e inglês. É o único do grupo que sabia falar a língua anglófona e foi isso que lhe permitiu comunicar com os mergulhadores britânicos no momento em que os encontraram. “Foi um milagre, fiquei incrédulo”, contou Dul na conferência. Na altura, o treinador preocupou-se porque não conseguia falar inglês e insistiu para que alguém o fizesse. “Tive de pedir ao treinador que se acalmasse”, revelou um dos rapazes. A plateia ri.

A meditação como forma de sobrevivência

Os rapazes e o treinador desapareceram a 23 de Junho na gruta de Thuam Lang, perto de Chiang Rai, no Norte da Tailândia, que ficou inundada pelas fortes chuvas e impediu a saída dos membros da equipa de futebol. Só foram encontrados dez dias após o desaparecimento, depois de ter sido montada uma equipa internacional de socorro. À descoberta jubilante seguiu-se o desafio de os tirar em segurança: uma das hipóteses era esperar que a água desaparecesse, mas o perigo fez com que fossem retirados, ao longo de três dias, com a ajuda de mergulhadores e com os milhões de litros de água bombeados da gruta.

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O grupo a chegar ao local da conferência de imprensa SOE ZEYA TUN/REUTERS

Assim que iam sendo resgatados da gruta, iam sendo imediatamente internados no hospital. Além de pequenas feridas e de alguns casos de infecção pulmonar, encontravam-se bem de saúde; o mais grave pode ser a saúde mental, com mazelas que só podem vir a manifestar-se mais tarde, daí que o acompanhamento psicológico tenha de ser imediato. A experiência traumatizante de estar tantos dias preso numa gruta, sem luz, sem comida e sem saber se seriam encontrados, pode fazer com que venham a desenvolver complicações como stress pós-traumático, por exemplo.

Outra coisa a ter em conta “é que os tailandeses têm valores culturais diferentes dos nossos”. Exemplo disso é a forma como a meditação foi utilizada como uma arma de sobrevivência dentro da gruta, quando o treinador Ekkapol lhes ensinou o que tinha aprendido quando era monge budista, pedindo-lhes que se mantivessem calmos e garantindo-lhes que seriam resgatados. “Com a meditação, as emoções e a linguagem para as despertar ficam quase em sintonia, dá uma capacidade de controlar estes mecanismos de adrenalina e medo de uma forma importante e gastando muito pouca energia psíquica”, explica a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos.

Na sociedade ocidental, considera, “há um frenesim da vida actual, a forma como os miúdos têm de estar sempre ocupados” que faz com que por vezes surja “este fascínio por ter um minuto de fama”. “São coisas que servem para repensarmos os valores da educação que nós, adultos, damos aos miúdos.”

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O momento em que foram encontrados ROYAL THAI ARMY HANDOUT
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