A Lapa do Lobo juntou em três dias o que já se fazia durante o ano

Neste fim-de-semana, a pequena localidade do concelho de Nelas abriu as portas para se transformar em aldeia cultural, com concertos, oficinas e exposições.

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A Lapa do Lobo, com apenas 750 habitantes, viveu a primeira edição de um encontro que quer deixar raízes DR

“E não passaram tudo o que falei”, reclama D. Lourdes, de flor amarela numa mão e bengala na outra, enquanto abandona o auditório da Fundação Lapa do Lobo (FLL). Na tela acabara de ser exibido o resultado do trabalho de Tiago Pereira, da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que entre Janeiro e Abril foi visitando a Lapa do Lobo, no município de Nelas, para fazer um registo da tradição oral da aldeia. 

O resultado foi o documentário Povo Que Conta, que estreou na sexta-feira, no primeiro dia do Lapa do Lobo – Aldeia Cultural e que capta tanto as histórias e lendas da terra como o seu quotidiano de outros tempos: da história do lobo que baptizou a lapa, da electricidade que só ali chegou em 1954, dos colchões feitos de palha de centeio, do homem que emigrou para o Brasil, não fez fortuna mas voltou “completamente louco” ou do burro que só iniciava a marcha se lhe dessem um copo de tinto a beber. 

A iniciativa Lapa do Lobo – Aldeia Cultural, que decorreu entre sexta e domingo, parte da vontade da associação cultural Contracanto e da FLL em concentrar muito do que já acontecia ao longo do ano e que é dinamizado pelas duas entidades culturais sediadas numa aldeia com cerca de 750 habitantes. Toda essa actividade “torna a aldeia muito singular”, considera o membro da fundação, Rui Fonte. 

Em três dias, a programação incluiu roteiros culturais, oficinas que vão da enologia à tecelagem, passando pelas artes de palco. Em exibição estiveram também exposições e instalações, como a de arte esquecida, em que estavam dispostos objectos anacrónicos pelos bancos públicos da aldeia, ou de reprodução dos ambientes captados na Lapa do Lobo pelo paisagista sonoro Luís Antero. Na componente musical, os concertos foram alimentados por grupos locais e encerrados no domingo por António Zambujo, que apadrinhou a primeira edição. 

Chamar gente de fora

Rui Fonte explica que o objectivo passava também por chamar gente de fora, mas que o conceito de aldeia cultural teria “de ser apropriado pela população”, que acabou por se envolver. Algumas das oficinas tiveram o contributo dos habitantes da aldeia ou tiveram lugar em lagares e terreiros utilizados pelas pessoas. A oficina de cianotipia, exemplifica, resultou numa exposição espalhada pelos estendais. 

A Contracanto, a outra metade da organização da iniciativa, instalou-se há quatro anos na escola primária da aldeia, que estava já desactivada. “Não foi fácil”, recorda o presidente da Contracanto, António Leal, que trocou Lisboa pela Beira Alta. “A aldeia reagiu com alguma desconfiança e muitas das recordações das pessoas estavam presas” ao edifício da escola. Havia um “certo atavismo” que demorou a ultrapassar, refere. 

Estes três dias tiveram também esse papel. Perto do final da conversa com o PÚBLICO, a vizinha do lado, Fernanda Loureiro, entra na sede da Contracanto com dois garrafões – um de branco e outro de tinto – para ajudar à festa. Pede apenas para não se pegar pela asa, que pode quebrar, e anuncia que o arroz doce não tarda. “As pessoas foram compreendendo o nosso trabalho”, que inclui dar formação artística a cerca de 80 jovens alunos, avalia António Leal. 

Rui Fonte explica que o objectivo da organização é continuar com a Lapa do Lobo – Aldeia Cultural depois desta edição de arranque, mas ainda não estão definidos os moldes. 

Voltando à história do burro com gosto pela pinga, José Gonçalves tem uma rectificação a fazer. Encostado à barraca de comes e bebes do Terreiro das Almas, o homem, nascido há 59 anos e criado na Lapa do Lobo, corrige: “O burro nem sequer era da aldeia. Vá ali a Canas de Senhorim, toda a gente conta isso.” Era um animal de carga que, ao longo do seu percurso de labor, parava no Borges, no Amadeu e no Hilário, as três tabernas que não abandonava sem levar tinto no bucho. “Era sagrado. Quando bebesse o seu copinho, arrancava”, descreve. Se o quadrúpede tinha nome, não sabe dizer; a história tem quase tantos anos como ele. 

A Lapa do Lobo “é uma aldeia muito particular, em que as pessoas ainda estão todos os dias à tarde no Terreiro das Almas” a conversar, descreve Tiago Pereira. Isto ao invés das aldeias históricas que direccionaram a sua actividade para o turismo. Dos antigos solares com espessas paredes de granito às casas menos antigas de emigrantes e retornados, sente-se que “é uma aldeia que pulsa”, mas que já foi muito maior, descreve o autor do documentário que teve por base um livro editado pela FLL, que recuperava “memórias e lendas sobre a identidade local”.

Entre as 29 pessoas que Tiago Pereira ouviu, a mais velha nasceu em 1914 e a mais nova em 1962. As raras fotografias a cores que acompanham as narrações mostram sobretudo os bailaricos, com homens e mulheres de rostos tisnados à conta do trabalho na terra. Em Portugal, a industrialização tardia fez com que só agora este mundo esteja a desaparecer. Há por isso uma “urgência em documentar”, sublinha. E acrescenta: “Sou o Nóe das velhinhas porque tenho que salvar as memórias todas, antes que não haja ninguém para contar as coisas que só ficam vivas até à última pessoa que se lembrar delas morrer.”

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