“Cada um lê a partir da sua própria vida”

Uma Odisseia, Um pai, Um Filho, Uma Epopeia é difícil de arrumar enquanto género. É biografia, é crítica, é memória, é viagem e a tentativa de responder a perguntas pessoais. Temos de ser brutalmente honestos sempre que se escreve uma memória. Esta é a convicção do crítico e memorialista americano.

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Como é que a literatura afecta o modo como vivemos as nossas vidas? A pergunta tem atravessado a vida e a obra de Daniel Mendelsohn, 58 anos, crítico, memorialista, um dos mais prestigiados classicistas, que no seu mais recente livro trabalhou a própria experiência para se aproximar mais de uma resposta a essa pergunta central. No dia em que o pai, matemático, cientista reformado, lhe pediu para frequentar o seu seminário sobre a Odisseia, Daniel disse que sim e durante seis meses aquele homem de 81 anos juntou-se com alunos de 20 anos ou menos para discutir a obra de Homero. Seria o pretexto para os dois fazerem um cruzeiro até ao mar Egeu e refazer o percurso de Ulisses. Um ano depois o pai de Daniel, Jay, ficou doente e morreu. Só então o escritor começou o livro, uma biografia do pai na qual o filho se expõe na intimidade da relação, cruzando o poema homérico com uma viagem sentimental e chegando a uma arqueologia da intimidade com centro ora no pai, ora em Ulisses. Uma Odisseia, Um Pai, Um Filho e Uma Epopeia, publicado em Portugal pela Elsinore, foi o ponto de partida para uma conversa com alguém apostado em aprofundar a relação entre literatura e real.

O que o levou a decidir juntar numa mesma narrativa a história da relação com o seu pai e a Odisseia de Homero?
A Odisseia é um livro muito importante na minha vida e queria escrever sobre ele, mas não sabia como. Depois aconteceu o meu pai querer frequentar o meu seminário sobre o livro e isso levou-nos a fazer o cruzeiro [que reproduz o trajecto de Ulisses], depois ele ficou doente e morreu. Tudo isso aconteceu em muito pouco tempo. Percebi que a vida me estava a dar uma oportunidade notável para escrever sobre a Odisseia, já que o podia fazer relacionando a obra com a vida real, ou seja, a vida deu-me uma grande história.

E para a contar escolheu uma estrutura que reproduz a estrutura da Odisseia, em espirais, não respeitando a ordem cronológica dos acontecimentos, intercalando as duas narrativas: a da sua vida e a da viagem de Ulisses. Foi claro que seria assim desde o início?
Levei muito tempo a escrever este livro, mais do que qualquer outro dos meus livros, e isso deveu-se a ter demorado a encontrar a estrutura. Desde o início que sabia que queria que a estrutura reflectisse a estrutura da Odisseia, mas não sabia como. Foi Homero a ensinar-me a lição. Primeiro tinha dividido o livro em partes: a introdução, o proémio, a sala de aula, a própria aula narrada do princípio ao fim, e depois o cruzeiro, e por fim a doença e a morte do meu pai. Tinha todas as peças, mas não sabia como as ligar, e subitamente tive a grande ideia de fazer como Homero e levar o cruzeiro e a doença do meu pai para a sala de aula, ou seja, tive de recorrer a avanços e recuos e dar alguma textura à história, em vez de a contar seguindo a ordem dos acontecimentos. Percebi que tinha de seguir a estrutura homérica, em vez de contar de A a Z, usando as aulas do seminário como alicerce. Tudo encontrou o seu lugar e fui capaz de terminar o livro.

É a essa circularidade que chama “pensar de forma homérica”?
Sim. É engraçado. Costumo dizer aos meus alunos que é aborrecido contar uma história do princípio ao fim, na ordem em que as coisas acontecem, e ali estava a eu a cometer esse erro. Aristóteles, na sua Poética, falava de alguns épicos que não sobreviveram e criticava-os por incorrerem nesse erro. Dizia que nunca se deviam contar as coisas por ordem. Devemos ouvir e pensar como Homero, se isso nos for possível.

No início do seminário apresenta aos seus alunos, entre eles o seu pai, a chamada “questão homérica”, a noção de dúvida face à autoria do poema, mas também da própria existência de Homero. E relaciona-a com um assunto que atravessa todo o seu livro: o das possibilidades do conhecimento, não apenas acerca de uma obra fundamental, mas também sobre possibilidades e limitações inerentes ao conhecimento de uma pessoa próxima. No caso, o seu pai...
Sim, a questão homérica tem para mim um valor metafórico, em especial para o leitor moderno tão interessado em interpretar textos de forma biográfica: para usar um exemplo óbvio, ler Sylvia Plath à luz da sua biografia, ou, para usar um exemplo mais próximo de si, ler Eça de Queiroz usando o que sabe da vida dele para interpretar os textos que ele escreveu. Esta é uma forma comum de ler, mas o que gosto acerca da questão homérica é que ela torna essa leitura, à luz da biografia, impossível e força-nos a pensar apenas no texto sem fazer esse tipo de psicologia. Pode ser um exercício útil para os estudantes, porque eles existem num tempo em que tudo é biografia.

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58 anos, crítico, memorialista, classicista, trabalhou a partir da própria experiência para responder a uma pergunta central: como é que a literatura afecta o modo como vivemos as nossas vidas? Ulf Andersen/Getty Images

Mas na sua pergunta refere um assunto que sempre me interessou e que está nos meus livros anteriores: o que é que conseguimos conhecer? Escrevi um livro grande sobre o Holocausto [Os Desaparecidos, D. Quixote 2009] e a história da minha família e essa questão já lá está, é obsessiva em mim: o que é que podemos saber acerca de alguma coisa? A questão homérica cabe nesta mente obsessiva. O que é que podemos saber, quando se está a falar de obras como a Odisseia ou a Ilíada? E comecei a interrogar-me até que ponto isso é importante, porque, como me disse um dia a minha professora citada no livro, o texto é o texto. Mesmo que façamos uma interpretação biográfica, o que sabemos sobre a vida de alguém é sempre problemático. Mesmo quando temos informação, o que é que sabemos realmente? Portanto, para mim, a questão homérica tem um valor simbólico acerca do conhecimento. Até que ponto é importante saber sobre um autor?

E, no caso, até que ponto se pode conhecer alguém da família?
Neste livro esse é o ponto essencial. A dada altura digo que a Odisseia é de certa forma uma biografia de Ulisses, porque, ainda que se foque apenas num episódio da vida dele, graça ao recurso a analepses e prolepses, dá-nos tudo acerca dessa pessoa até à morte e é óbvio que, ao escrever sobre isso, quero que o leitor esteja também a pensar no meu pai, uma vez que este livro é suposto ser uma biografia do meu pai. Mas, como referiu, é também sobre o pouco que eu sabia acerca do meu pai. Todos pensamos que conhecemos os nossos pais e não conhecemos.

Escreveu até agora três memórias...
Pois é, o que é revelador também dessa obsessão.

O que torna esta diferente das anteriores, The Elusive Embrace: Desire and the Riddle of Identity, sobre a sua identidade gay e a família, e Os Desaparecidos?
Em cada um desses livros — chame-lhes memórias ou narrativas de não ficção — interligo uma história pessoal contemporânea com a análise de um texto antigo e, de certa forma, o que estou a analisar é: o que é que a literatura nos diz sobre a vida? Em cada um desses livros uso o texto antigo de forma diferente. Acho que neste é onde essa questão aparece mais sublinhada, porque está bem à superfície. Desde o início do livro que digo que a Odisseia é o texto-guia. Nos outros havia a tentativa de integrar a exegese do texto; neste essa não foi uma questão, porque o livro é sobre ensinar a Odisseia, o intertexto está à superfície. Isso foi uma vantagem, porque desde o início que se sabe que a Odisseia é o texto paralelo. O problema, porque estou a estabelecer o paralelo entre coisas que acontecem na Odisseia com coisas que acontecem na minha vida e na do meu pai, é que tive de pensar numa maneira de dar a Odisseia ao leitor. Não posso presumir que qualquer pessoa que leia este livro tenha familiaridade com a Odisseia. Fi-lo reproduzindo certas discussões que tivemos ao longo das aulas do seminário, e isso é em simultâneo lúdico, porque houve experiências divertidas, e instrutivo, porque dou ao leitor o que ele precisa de saber sobre a Odisseia para ler este livro.

Isso leva-me a outra questão: a digressão. Está presente no modo de narrar e na viagem subjacente a esta narrativa. Essa questão vem associada a outra: a capacidade de inventar, improvisar, quando se conta uma história. Tudo isto faz parte da própria questão homérica.
Essa questão é muito interessante. Quando se ensina os clássicos, a grande questão é: posso dizer qualquer coisa de novo? A originalidade surge justamente no estudo dos clássicos e é uma questão que afecta os escritores. O tema da digressão está relacionado com isso. Claro que gosto de digressão nos meus textos e leva-me a uma resposta à pergunta anterior: não sei se consigo dizer alguma coisa nova, mas posso tentar dizê-la de nova forma. Penso que a digressão me permitiu escrever de forma mais elíptica. Interesso-me muito por contar histórias. Em Os Desaparecidos o meu avô aparece como um grande contador de histórias. E, claro, não há novas histórias, tudo se resume ao modo como se conta, e, se há alguma originalidade nos meus livros, não é porque tenha tido grandes visões sobre a vida, mas porque encontrei uma maneira de contar que talvez seja interessante. E acho que também é mais desafiante para o leitor. Na cultura contemporânea há demasiada ênfase na acção e numa espécie de satisfação imediata, e gosto da digressão, porque retarda a satisfação narrativa e força o leitor a tentar entender qual é o desenho do texto, o que nem sempre é óbvio. E isso também é muito homérico [risos].

E há a atenção à intimidade de Ulisses que cruza com a intimidade com o seu pai. Podemos falar deste livro como uma arqueologia da intimidade?
É interessante essa ideia de intimidade relacionada com o conhecimento. Que intimidade podemos ter com alguém e quão íntimos podemos ser com um texto? Até que ponto se pode saber profundamente alguma coisa ou de alguém? Posso não ter tido consciência disso quando estava a escrever, mas há um tema paralelo neste livro entre o meu pai e a Odisseia enquanto meios de eu tentar uma intimidade.

Isso, quando estamos perante um clássico cheio de dúvidas, e um matemático, um homem que gostava da exactidão, como o seu pai...
Sim. O meu pai era um cientista e para ele tínhamos de saber o que era preciso saber mas não mais. Para ele x era x, mas gosto de pensar que o livro prova que x não é x e que o meu pai era mais do que aquilo que eu pensava, e que muitas vezes é preciso ir além da equação de que x é x.

Depois de escrever o livro foi mais evidente a razão pela qual se interessou desde cedo por clássicos?
Acho que sim. É outra coisa de que o livro trata, tentei incluir nele a genealogia do meu próprio interesse pelos clássicos; porque é que alguém se sente fascinado por determinadas coisas, porque é que o meu pai era um matemático... No livro sugiro que há muitos, e muita vezes, motivos psicológicos. Acho que o interesse do meu pai em ciência e em matemática está ligado à sua resistência emocional, foi um modo de conter emoções. Se se conseguir resumir tudo a uma equação, isso é um modo de conter algumas coisa. Isso explica porque suspeitou sempre do meu interesse pela literatura, já que para ele a literatura não era quantificável. E com isso eu quis interrogar o meu próprio interesse pelos clássicos, que, como sugiro, se deveu em parte a tentar agradar o meu pai, porque, tal como o estudo da matemática, o estudo dos clássicos é difícil e rigoroso, e isso era atractivo para ele.

Mas há sempre razões que nunca são muito simples. Acho que tem razão, o livro não é apenas uma tentativa de entender a Odisseia, é também a tentativa de entender porque é que alguém se sente interessado pela Odisseia como assunto intelectual.

A dada altura refere que a Odisseia é o grande livro clássico. Porque acha isso?
Porque é sobre as coisas em que estou interessado. É sobre narrativa e sobre a verdade na narrativa, o modo como as pessoas constroem o seu entendimento da verdade através de uma história. E é sobre identidade da forma mais complexa e sofisticada. A Odisseia interessa-se por todas as questões que me têm interessado na vida e enquanto intelectual. É sobre o que constitui as relações familiares. É sobre como sabemos o que somos — tema recorrente no meu trabalho. Encontramos sempre o texto de que precisamos e para mim esse livro é a Odisseia.

Nesse estudo profundo dos clássicos, a gramática e a arquitectura da linguagem surgem por inerência, declara-lhes aqui o seu amor, inclusive, e liga esse seu interesse à matemática.
Adoro esse tema. E acho que esse meu interesse é uma herança da mente matemática do meu pai, a insistência na estrutura e na lógica e em sistemas e paradigmas. As pessoas tendem a ter medo da gramática.

Como da matemática...
Exacto. Mas tal deve-se à maneira como são ensinadas na escola. Há uma velha tradição de ensinar mal matemática e gramática, quando somos novos. Mas sempre adorei falar de gramática.

Que distinção faz entre o seu trabalho de crítico e de memorialista?
Não faço distinção tão grandes como fazem outras pessoas. Claro que são géneros diferentes, mas tento não exagerar a diferença. Num, como no outro, estou sempre a examinar como é que a grande literatura afecta o modo como vivemos. Essa é questão a que tento responder com o meu trabalho crítico. A minha escrita para jornais e revistas é uma tentava de explicar grandes textos. Neste momento estou a escrever uma peça para a New Yorker sobre Vergílio e a Eneida e a minha desculpa para o fazer é o facto de haver uma nova tradução. Irei falar dela, claro, mas o que quero é escrever sobre porque é que Vergílio é enorme e porque precisamos de continuar a falar de Vergílio, e porque é que a Eneida é um texto sobre o qual temos de pensar. Muitas vezes as pessoas acusam-me de pôr nos meus textos críticos as minhas reacções pessoais a esses textos. E ao mesmo tempo a minha escrita memorialista tem muito material sobre texto. Tento sempre juntar o discurso pessoal e o textual para que dialoguem. Estamos sempre nesse campo de ligação entre literatura e vida, e estou firmemente convicto de que há uma ligação forte. Nos EUA, o ensino da literatura é cada vez mais visto como um luxo para elites e que não tem nada que ver com a vida real e estou sempre a dizer que estes textos vivem porque dizem qualquer verdade sobre a vida, e nas nossas vidas estamos sempre a viver situações que fazem parte de grandes memórias literárias.

Encara então a crítica como um trabalho profundamente pessoal.
Sim, absolutamente. Quando escrevo sobre teatro ou ópera, digo por vezes que fiquei em lágrimas. Acho importante dizer às pessoas que não tem mal ter reacções fortes a uma obra e isso vale para a literatura clássica. As pessoas tendem a ter medo dos clássicos, a acharem que são remotos. Não são remotos, tudo o que precisamos é de os entender para que se tornem vivos.

E este seu livro é uma viagem muito emocional.
Bastante.

Afirma que a Odisseia é um livro sobre sofrimento. O seu livro também é. Como lidou com a dor?
Não gosto de pensar na escrita como terapia, mas uma maneira de lidar com a dor é pensar nela e analisá-la. Escrever este livro ajudou-me a processar não apenas a morte do meu pai, mas relação difícil que tivemos durante muito tempo. E ao contrário do que muitos pensam adorei escrevê-lo; foi como estar com o meu pai de maneira muito agradável; senti que ele estava presente. Não foi triste ou melancólico. E ajudou-me a pensar em muitos aspectos da minha vida, como acontece sempre que se escreve uma memória. E sempre que se escreve uma memória o importante é ser-se rigoroso connosco.

Como?
Quando escrevemos sobre nós, queremos aparecer o melhor possível. É um reflexo querer apresentarmo-nos sob uma boa luz. Mas o pacto com o leitor passa por sermos brutalmente honestos. Claro que há coisas da minha relação com o meu pai que não são simpáticas e senti que tinha de as incluir. Quando era jovem, sentia que era mais educado do que o meu pai e alguns dos seus erros envergonhavam-me. Isso não dá uma grande imagem de mim, mas era importante incluir isso.

E conta isso com ironia, algo também homérico.
Sim, havia uma grande sentido de humor na minha família, e o meu pai em particular era muito irónico, com humor muito seco. Isso ajuda. Mas quando se escreve sobre família tem de se ser muito honesto sem com isso necessariamente ferir os sentimentos das pessoas.

Isso foi uma preocupação? Ao falar de si e do seu pai fala de quem está próximo.
Foi. E se as pessoas de quem falo estão vivas, consulto-as. Por exemplo, um dos meus irmãos não quis que incluísse algumas coisas que aconteceram quando o meu pai estava a morrer e que tinham que ver com ele e com o meu pai, porque sentiu que isso fazia parte da história dele e não da minha. É preciso respeitar essas fronteiras. E tive pena, porque houve momentos bonitos entre o meu irmão e o meu pai. Tudo o que conto no livro é verdade, mas nem tudo o que é verdade está no livro.

O modo como pai e filho lêem a Odisseia é diferente. Para o pai, Ulisses não é tão heróico. Esse questionar do heroísmo cruza o livro como um elemento que divide pai e filho.
Uma coisa em que penso muito é no que significa ser herói. Será que o meu pai foi um herói à sua maneira? Como sabemos de ler a mitologia, há ambiguidade nos heróis. E é um facto que ninguém lê o mesmo texto da mesma maneira. O crítico está sempre a apresentar a sua leitura. E o meu pai queria chegar apenas a uma leitura, como se isso fosse a tal equação, mas o que sabemos da literatura é que há muitas maneiras de ler um texto, cada leitor tem diferentes personalidades e diferentes experiências de vida. No meu livro isto culmina num clímax, quando ele fala do casamento com a minha mãe. Isso faz-me regressar a outro ponto desta conversa: cada um lê a partir da sua própria vida. Sempre que se discute um livro com alguém, sabemos dessas diferenças de leitura e isso prova que um livro não é uma equação, porque se fosse haveria apenas uma resposta certa. Nesse sentido o meu pai estava certo: a crítica é subjectiva porque cada leitor e cada crítico tem uma personalidade e diferentes experiências de vida. Isso fascina-me. E isso relaciona-se com o grande tema do livro que é a narrativa. Ulisses conta muitas histórias a muitas pessoas e parte da graça está nisso. Mas isso é também parte do problema.

Numa entrevista disse que quando era jovem uma das razões pelas quais se sentiu atraído pela crítica é que lhe parecia ser uma arma contra o sentimentalismo. Continua a ter essa opinião?
No início pensei que isso era verdade, mas a ironia é que agora ponho sentimento na crítica. Quando comecei, achava que o importante na crítica era exibir o quanto se sabia e mostrar que se era a pessoa mais esperta entre as pessoas. Escrevo crítica há 30 anos e acho que o que distingue uma boa peça crítica não é mostrar que se está certo, mas que esse texto seja interessante. Estar certo ou errado, parecer mais ou menos esperto, não me importa tanto, o que me interessa é falar do que estou a criticar de um modo interessante. Talvez daqui a dez anos ache isto errado e perceba que algum livro ou filme não eram assim tão interessantes, ou então eram mesmo melhores do que pensava.

Como é quando sente que se enganou? Existe alguma culpa?
Não. Como referi, a pessoa que fez essa crítica já não existe tal como era. O modo como se pensa um trabalho de literatura quando se tem 30 anos, é — assim se espera — diferente de quando se tem quase 60. Mudamos, evoluímos, e isso é bom, e claro que altera opiniões. E é bom saber disso.

E é outra vez a ideia da identidade que muda com o tempo. Como quando Ulisses regressa a Ítaca não sendo o homem que partiu.
Pois é, e estamos num dos pontos mais centrais da Odisseia. Sabemos que no fim ele volta para a mulher e tem de provar a sua identidade e não é a pessoa que saiu 20 anos antes. O tempo muda-nos. É uma ironia do texto de que Homero está consciente. E Ulisses também. Ele tem de provar a sua identidade. Eu não escrevo como um académico de clássicos tradicional, mas, se escrevesse, estaria interessado em explorar a relação ente a Odisseia e o tempo; e o tempo está profundamente ligado à identidade. Portanto, o Daniel Mendelsohn que escreveu sobre um livro em 1996 não é o mesmo que faz crítica agora.

No cruzeiro que faz com o seu pai não chegam a Ítaca. Isso também assume no livro uma carga simbólica, conveniente.
Sim, o livro é uma metáfora para muitas coisas, entre elas a morte, quando finalmente se chega a casa e se pára o movimento. E se para muitos naquele cruzeiro foi uma frustração, eu gostei muito do facto de nunca ter chegado a Ítaca. É tão literário estar naquele cruzeiro sobre a Odisseia e nunca chegar a Ítaca! Foi perfeito.

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