As cartas de amor não são ridículas… são provas

Na década de 20 do século passado, Manuel escreveu um punhado de cartas de amor à mulher que desvirginara. Mais de 90 anos depois, a filha de ambos levou essas cartas a tribunal para ser reconhecida como filha de Manuel*

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Miguel Feraso Cabral

Esta é a história de como a descoberta de uma carta de amor há muito amarelecida num velho baú de atoalhados de linho acaba numa ordem judicial para exumação do cadáver de um homem que, se ainda fosse vivo, teria hoje 154 anos. O conflito judicial foi à Relação e daí escalou até ao Constitucional. Em causa está uma acção de investigação de paternidade intentada por Carmo que, apesar de ter 94 anos, alega não querer morrer sem se ver reconhecida como filha de Manuel.

Comecemos pelos factos tal qual foram pela primeira vez apresentados há oito anos no tribunal de primeira instância de Santo Tirso. Carmo, nascida neste concelho, no dia 24 de Abril de 1924 – no mesmo ano em que nasceu um presidente, Mário Soares, e em que morreu outro presidente, Teófilo Braga - poderia não ter tido sequer direito a ver o seu nome plasmado neste jornal não fosse ter-se dado o caso de, no Verão de 2009, ao remexer numa arca contendo linhos que lhe havia sido deixados pela sua mãe, Amélia, ter acidentalmente descoberto umas cartas em que o pretenso pai se lhe referia como filha.

Nas cartas, Manuel exigia provas de amor, marcava encontros “pela hora da missa”, dizia a Amélia que continuava a pretendê-la para casamento, referia-se a Carmo como “a nossa [deles] filha” e despedia-se com frases como esta: “Recebe um coração cheio de saudades e dá um apertado abraço na pequenita que estou morto por a ver”.  

A autora da acção tinha já dobrado a esquina dos 80 anos de idade quando esbarrou em tais escritos. Poderia tê-las guardado como cartas de amor ridículas, como as qualificava o heterónimo Álvaro de Campos. Ter-se quedado no seu ensimesmamento anónimo. Mas vivera a vida toda a remoer a tristeza de se ver descrita no BI como filha de pai incógnito. E, segundo as testemunhas que levou ao tribunal, no âmbito da acção de investigação de paternidade, chorou quando viu a prova de que o pretenso pai seduzira e prometera casamento à sua mãe com quem conseguiu manter relações de cópula regulares, “quebrando-lhe a virgindade”, como descreve o tribunal, “nomeadamente nos primeiros 180 dias dos 300 que precederam o nascimento da autora”, lapso de tempo durante o qual a mulher “não teve relações sexuais com nenhum outro homem”.

Na altura, o relacionamento entre Manuel e Amélia era assumido. O casamento só não terá avançado porque os pais de Amélia recuaram na promessa de lhes ofertar uma bouça. Gorado o namoro, seguiram caminhos diferentes. Mas, antes disso, durante a gravidez de Amélia e após o nascimento de Carmo, Manuel tratava a autora como filha, nomeadamente nas cartas de namoro que endereçava à mãe - as tais que ela guardou e que vieram a ser casualmente descobertas.

Casado entretanto com outra mulher, e pai de três outros filhos, Manuel fez-se rico. A pretensa paternidade era voz corrente no meio em que viviam. Tanto que a mãe do investigado quando morreu deixou em testamento a Carmo, então com sete anos de idade, um legado em dinheiro de valor avultado para a altura: 5.000$00. Mas o certo é que Manuel acabaria por morrer, no dia 23 de Agosto de 1958, sem nunca ter reconhecido formalmente a paternidade.

E a discussão que se seguiria nos tribunais – na primeira instância e nos sucessivos recursos ao Tribunal da Relação do Porto e ao Constitucional - bisou as já tidas relativamente a muitas outras acções de investigação de paternidade, com sucessivos acórdãos a emitirem determinações contraditórias à constitucionalidade do artigo 1817º do Código Civil que determina a caducidade do direito de investigar a paternidade.

É uma velha discussão que se resume em poucas linhas. Até 2009, uma pessoa só poderia requerer a investigação judicial de paternidade até dois anos após ter atingido a maioridade. Porém, sucessivos acórdãos, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, têm considerado tal garrote temporal inconstitucional, por entenderem que o direito à identidade não pode prescrever. Os limites temporais ancoravam-se (e ancoram-se) na necessidade de impedir que sobre os pretensos pais penda ad eternum uma ameaça com repercussões óbvias na sua estabilidade jurídica e familiar, bem como de travar eventuais “caças à fortuna”.

E havia ainda o argumento da aleatoriedade da prova, o qual foi perdendo peso com a consolidação das novas técnicas laboratoriais de determinação científica da paternidade (como os testes de ADN). Assim, em 2009, esse prazo foi alargado para dez anos após a maioridade. As alterações ao Código Civil passaram ainda a admitir a flexibilização desse prazo em circunstâncias excepcionais: se alguém se confrontar com dados novos que justifiquem a investigação - como velhas cartas de amor, por exemplo - dispõe de três anos após essa descoberta para interpor essa acção, tenha a idade que tiver.

Depois de a Relação ter decidido que esta acção poderia prosseguir por se enquadrar neste regime especial previsto pelo legislador, o que os réus desta acção – filhos reconhecidos de Manuel - procuraram contestar quando o processo voltou a baixar à primeira instância foi a ideia de que a sua pretensa irmã só tantos anos depois tenha descoberto tais cartas. “Normalmente, quando uma filha herda pertences da mãe, tais como linho, tem um carinho especial por esses objectos, estimando-os e conservando-os com imensa dedicação”, notam, para concluírem não ser “plausível” que Carmo tivesse transportado a arca de casa de sua mãe até à sua, deixando-a intocável numa arrecadação, “sem nunca ter tido a curiosidade sequer de saber qual era o seu conteúdo”. E contestaram ainda que, quando foram inquiridas em tribunal, seis anos depois de a acção ter entrado, que as testemunhas arroladas por Carmo – a filha e o genro – pudessem ser capazes de se lembrar que as missivas tinham sido descobertas no Verão de 2009 ao mesmo tempo que se revelaram incapazes de revelar com precisão em que ano de escolaridade estava então a filha de ambos.

A juíza considerou, porém, credíveis os testemunhos e plausível a capacidade de estes situaram no tempo tal achado, nomeadamente porque coincidiu com a altura em que mudaram de casa. E deu assim luz verde ao pedido de Carmo para que o cadáver do seu pai seja exumado e recolhido o seu ADN.

Esta exumação estava marcada para o passado dia 17 de Julho. Na altura em que a acção entrou no tribunal havia três filhos legítimos vivos, mas dois morreram entretanto. Restou apenas uma, também já muito idosa. À morte desta, a herança de Manuel que permaneceu indivisa todos estes anos irá para os sobrinhos da única descendente reconhecida. Isto a não ser que o ADN recolhido permita comprovar que Manuel é efectivamente pai de Carmo.

*Para salvaguarda dos envolvidos, os nomes adoptados neste texto são fictícios.

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