Obrigada, João Semedo

Sempre admirei a sua discrição, a sua humildade e segurança, a forma como nunca se deixou confundir.

João Semedo não foi um político qualquer. Era senhor de uma raríssima seriedade, de um raríssimo conhecimento, de uma raríssima profundidade de abordagem dos temas. E de uma imensa tranquilidade. Conheci-o era ainda um importante e prestigiado dirigente do PCP, nos anos noventa do século passado. E sempre admirei a sua discrição, a sua humildade e segurança, a forma como nunca se deixou confundir.

Foram essas características que ditaram o seu percurso político. Quer no activismo social e político durante a ditadura, quer no PCP desde antes do 25 de Abril, quer depois na sua aproximação tardia ao BE, fruto do respeito e da ligação que tinha com Miguel Portas.

Com o mesmo empenho e dedicação com que travou todas as lutas, aceitou ser coordenador do BE, de forma a assegurar o equilíbrio interno das suas tendências e a transição da liderança. Assim como se dedicou até ao fim à defesa do modelo de Serviço Nacional de Saúde que considerava socialmente justo - e que trabalhou com António Arnault - e à causa da defesa do reconhecimento pelo Estado do direito à eutanásia.

Ao longo de mais de vinte anos, mantive com João Semedo uma relação profissional rara. Foi minha fonte em inúmeras notícias, recorri a ele para perceber problemas e contextualizar situações, conversei com ele sobre política só pelo prazer de ouvir alguém sensato, conhecedor, sério.

Mas, da minha parte, em relação a João Semedo há mais do que o reconhecimento de uma relação profissional de confiança, franqueza e seriedade. Há uma dívida de gratidão e de cumplicidade. Contam-se pelos dedos os políticos com os quais, ao longo de três décadas de jornalismo, estabeleci algum tipo de laços de cumplicidade. João Semedo foi um deles.

Há mais de dez anos, num momento particularmente difícil da minha vida, em que uma pessoa da minha família próxima foi de repente internada com um cancro no plumão fulminante, João Semedo soube da situação através de uma outra pessoa da minha familiar de quem era amigo de longa data.

Um dia, nos corredores do Parlamento, dirigiu-se a mim e abordou a situação, querendo saber como eu estava em relação ao drama pessoal que vivia. Surpreendida, percebi como ele soubera do que se passava e percebi também que já se inteirara clinicamente do processo junto do médico responsável pelo caso na instituição pública de saúde onde essa pessoa estava internada. É certo que era médico. É verdade também que nos conhecíamos bem, falávamos com frequência por razões profissionais. Mas o meu espanto foi total. Até pela atitude que ele manteve nesse período.

Durante o tempo de vida que restou a essa pessoa - ao todo, entre o dia da descoberta da doença e internamento e a morte passou um mês e uma semana -, João Semedo teve a preocupação de várias vezes falar comigo, confortar-me, preparar-me para a morte de alguém que me era muito querido e próximo. Nessas conversas, nunca falou de política. Nunca perguntou se era preciso “alguma coisa”. Nunca se ofereceu para nenhum “favor” nem nenhuma “cunha”. Apenas se preocupou comigo e em confortar-me, num gesto humano de uma grandeza sem par. Depois dessa pessoa morrer, nunca mais falámos sobre o caso. As conversas voltaram a ser sobre política. Mesmo quando ele adoeceu. Mesmo quando ele ficou sem conseguir falar normalmente e passámos a conversar por mail.

Percebi, nessa fase da sua doença, quer pela troca de mails, quer pela última entrevista de vida que lhe fiz com o Nuno Ribeiro (PÚBLICO 07/08/2016), como ele estava preparado para morrer. Tanto que nunca me atrevi a ensaiar sequer qualquer tipo de conforto. Continuamos a falar sobre aquilo que formalmente nos aproximou, a política. E como ele gostava de política, no fundo como ele gostava das pessoas. Nunca me atrevi a tentar regressar ao patamar de cumplicidade que tínhamos vivido. Não só por que senti que não me cabia fazê-lo, mas sobretudo porque não seria capaz. Afinal, são raros os que têm a grandeza e a nobreza de alma de João Semedo.

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