O “homem branco autoflagelado”

Não haverá ainda quem tenha feito a guerra e massacrado aldeias inteiras em nome e por ordem de quem governava Portugal?

O novo museu celebratório dos Descobrimentos, como Fernando Medina quer (ou queria?) abrir em Lisboa, era, para Miguel Sousa Tavares (MST), “uma ideia absolutamente consensual e necessária”, mas suscitou uma discussão sobre a forma como descrevemos e musealizamos a experiência colonial portuguesa. Ora, entre muitos outros, dois Tavares (o Miguel Sousa e o João Miguel) acham que os “ativistas anti-Descobertas” querem “fazer uma espécie de museu de autoflagelação (...), um museu contra a nossa História, contra uma História que foi tão grandiosa que, se calhar por isso mesmo, nem a conseguimos entender, na nossa pequenez actual” (MST, Expresso, 28.4.2018). Ao  reacionarismo historicista de MST, João Miguel Tavares (JMT) juntou moralismo e psicologismo barato: na crítica ao discurso hegemónico sobre aquela “história grandiosa” carregada de silêncios e omissões sobre a violência colonial, há, diz ele, “uma estranha mistura de catolicismo com judaísmo” de gente que quer “assumir velhos pecados” (JMT, PÚBLICO, 14.6.2018). A isto chamam os anglossaxónicos “self-hatred”, o ódio de si próprio, de que fala gente da mesma tribo dos Tavares a propósito dos judeus que criticam a ocupação israelita da Palestina, ou dos homens que denunciam a dominação masculina, ou dos ocidentais que criticam o papel histórico do Ocidente, isto é, de tudo aquilo que o reacionarismo cultural diz hoje ser uma “moda” estrangeirada adotada por uma “intelligentsia ociosa” nacional.

Museu da Culpa do Homem Branco”, chama-lhe JMT, onde “homens brancos” querem, pelos vistos, musealizar a sua culpa. Eles carregam uma “culpa coletiva centenária (...) – como se algum de nós tivesse qualquer razão para se sentir responsável pelos atos de quem viveu há 300 anos”. Que espantosa conceção da história e da relevância social do passado! Não havendo responsáveis vivos, para quê discutir o passado do colonialismo e da violência, da exploração e da desigualdade imposta, todas experiências intrínsecas do colonialismo? Ora se “é difícil argumentar que a geração pós-25 de Abril andou de chicote na mão”, se se volta a discutir tudo isto é porque se quer “permitir a vitimização histórica do português de origem africana no presente.” Como se “o branco de 2018 [fosse] culpado pelos atos do esclavagista de 1718 para que o negro de 2018 possa ser vítima da escravatura de 1718.” Vítima de 1718? Não: vítima em 2018! “Cultivar a ‘magia’ da época colonial alimenta o racismo histórico e estrutural e prolonga as hierarquias de controlo e repressão para com as comunidades negras no país”, como lembraram “os negros e negras deste país” que, “recusando a invisibilidade que nos é imposta”, entraram na polémica em nome próprio (“Não a um museu contra nós!”, PÚBLICO, 22.6.2018).

O que é extraordinário é que JMT julgue que, porque nenhum de nós foi esclavagista em 1718, se possa deduzir que 300 anos sejam suficientes para apagar conceitos como o da continuidade da responsabilidade do Estado, ou da acumulação de riqueza colonial vertida na economia portuguesa, ou do simples dever de, nas políticas públicas de memória (por exemplo, os museus), assumir o passado por inteiro, e sobretudo aquele que se ocultou e manipulou. E se tiverem passado só 65 anos? E se houver ainda algum português de hoje que tenha participado no massacre de sãotomenses em Batepá, em 1953, quando se revoltaram contra o trabalho forçado e o governador achou que eles eram agentes soviéticos – podemos musealizar essa história ou é autoflagelação? E se houver ainda quem, barriga cheia de cerveja, tenha feito tiro ao alvo de cima de carrinhas de caixa aberta, em 1961, nos musseques de Luanda depois da revolta do 4 de fevereiro? Ou tenha integrado milícias no Norte de Angola, em 1961, enquanto a tropa não chegava de Portugal, e organizou batidas contra suspeitos de apoiar o “terrorismo”, matou milhares, enterrou gente viva com a cabeça de fora, passou com um trator por cima, espetou cabeças em paus ao longo da picada por onde depois chegaria a tropa – podemos musealizar isso ou o turista não gosta? E não haverá ainda quem tenha feito a guerra em tropas especiais e massacrado deliberadamente aldeias inteiras em Moçambique, em nome e por ordem de quem governava Portugal? “A geração do pós-25 de Abril”, nada tem a dizer sobre isto? Ou este é, como acha MST, “um problema deles”, de quem anda a exigir falar da violência colonial, “mas não pode ser problema dos outros”, isto é, “deste pequeníssimo povo, entalado entre o fim da Europa e o mar, [que] escolheu o mar como destino”?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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