E se Trump ajudar a Europa a entrar na “idade adulta”?

Dividida e enfraquecida, a União Europeia teme perder o estatuto de “protagonista da História” para se tornar numa peça no tabuleiro da competição entre as grandes potências.

1. A febre sobe na Europa. Antes e depois das cimeiras do G7, da NATO e de Helsínquia, Donald Trump submeteu os europeus a um brutal “banho de realidade”. Ao tratar a União Europeia como “inimigo”, ao ameaçar desfazer a NATO e ao apostar na desintegração da UE, o Presidente americano não põe em causa apenas o futuro, mas está a desestabilizar os precários equilíbrios políticos do continente. Nada ficou como dantes. Dividida e enfraquecida, a Europa teme perder o estatuto de “protagonista da História” para se tornar uma peça no tabuleiro da competição entre as grandes potências.

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1. A febre sobe na Europa. Antes e depois das cimeiras do G7, da NATO e de Helsínquia, Donald Trump submeteu os europeus a um brutal “banho de realidade”. Ao tratar a União Europeia como “inimigo”, ao ameaçar desfazer a NATO e ao apostar na desintegração da UE, o Presidente americano não põe em causa apenas o futuro, mas está a desestabilizar os precários equilíbrios políticos do continente. Nada ficou como dantes. Dividida e enfraquecida, a Europa teme perder o estatuto de “protagonista da História” para se tornar uma peça no tabuleiro da competição entre as grandes potências.

Esta entrada tem um tom retórico. Mas poderia começar em tom de comédia, evocando, por exemplo, a visita que Emmanuel Macron fez a Washington em Abril. Segundo a imprensa americana, Trump propôs-lhe que a França abandonasse a UE em troca de um muito favorável acordo comercial bilateral. Em compensação, não pára de fustigar Angela Merkel, como naquele tweet durante a crise governamental sobre a imigração: “O povo da Alemanha está a virar-se contra a sua liderança.” Faz tudo parte do mesmo filme.

2. Num texto anterior (“O cisne negro”, de 16 de Julho), tentei resumir o impacto do trumpismo na Europa e a possibilidade de uma ruptura da NATO, mesmo se à revelia dos interesses estratégicos americanos. Trump não funciona segundo a lógica da “velha ordem”, que se propõe destruir, e por isso deve ser levado a sério. É ele quem fala em nome dos Estados Unidos, a maior potência mundial. Nada disto é original, nem propriamente uma surpresa. Desde a sua posse que se publicam artigos com títulos como “A Administração Trump está a tentar destruir a UE, ou não?” (Washington Post, 21 de Fevereiro de 2017). A diferença é que os europeus tomaram as ameaças como fanfarronice e, hoje, confrontam-se com a sua realidade.

Os europeus podem começar por ter uma má reacção. Seria tentador pensar que dentro de dois anos Trump pode sair de cena. E se, em vez de dois anos, ficar mais seis? Será mais correcto esperar pacientemente que o mandato termine para verificar se voltam as regras do passado ou assumir, desde já, o risco de responder à mudança americana com novas escolhas estratégicas?

Em princípio a resposta é simples: “Os líderes europeus não podem continuar a esconder-se por trás do wishful thinking de que os Estados Unidos em breve regressarão ao normal”, escreve no diário online Politico o analista Paul Taylor.

Não sabemos o que será a América pós-Trump, mas não será seguramente a de Obama. A realidade já mudou. E, em relação à Europa, pode haver uma mudança de sensibilidade. A maioria do establishment político, incluindo o republicano, defende a importância dos laços transatlânticos. Mas Trump procurará virar a opinião pública americana contra a Europa, acusada de ser a causa do défice americano e de outras coisas.

3. A ofensiva americana — que em parte se sobrepõe à russa, mas que com ela não deve ser confundida — assenta em vários planos. No apoio aos populismos e soberanismos eurocépticos, no estímulo da extrema-direita ou na exacerbação do debate migratório; na cisão entre países do Leste e do Oeste; na radicalização do desastre do “Brexit”; na ameaça de retirar as garantias de segurança da NATO. E, enfim, no esforço de abrir uma brecha entre a França e a Alemanha, com interesses distintos perante as taxas comerciais. “Desperta Europa; os EUA querem romper a UE”, escreveu há dias num tweet Anthony Gardner, ex-embaixador americano junto da UE.

A Europa sempre soube, desde o fim da II Guerra Mundial, que a sua sobrevivência depende da aliança americana. A política de De Gaulle, do programa nuclear à suspensão da participação na NATO, foi em larga medida um gesto simbólico de soberania e a vontade de fazer uma política externa independente de Washington. Houve várias crises na Aliança, mas nenhuma como a actual.

Escrevem na Foreign Affairs os analistas americanos Alina Polyakova e Benjamin Haddad: “Além do fosso entre os EUA a Europa Ocidental, há uma nova realidade. A Europa, internamente dividida, está a perder capacidade de intervenção a nível mundial e a Administração Trump, actuando mais como predador do que como aliado, é tentada a explorar essa fraqueza.” Consequência? “A Europa tem de aprender a viver numa nova era de competição de grandes potências e não apenas a lidar com o imprevisível Presidente americano e com o seu desdém pelas alianças multilaterais; é uma questão de sobrevivência. (...) Para se tornar relevante, a Europa tem de saber jogar com as suas forças nessa competição de potências.” Concluem: “Se a Europa quer ser um actor e não um tabuleiro em que as grandes potências competem, os líderes europeus têm de assumir a responsabilidade pela defesa e segurança e de usar o seu potencial económico.”

4. A Europa tem pontos fracos. O primeiro é a divisão interna, que a paralisa, e o segundo é a pressão americana que expõe a sua fraqueza actual. Falar disto exige fôlego. Limito-me a fazer duas notas.

Apesar do aspecto de vaga irresistível, os soberanismos têm fraquezas inatas. Em primeiro lugar, os interesses nacionais não são comuns. Tomando o exemplo das migrações, são até contraditórios. Para lá dos discursos, a Itália nada tem em comum com a Hungria ou a Áustria. No plano económico, o proteccionismo defendido pelos soberanistas levaria à fragmentação do mercado único e seria inaceitável para a maioria dos seus eleitores. O dilema com que se debate a aliança soberanista que governa a Itália é elucidativo.

É verdade que a Europa precisa mais da América do que esta da Europa. Mas também é verdade que, mesmo na óptica de Trump, será muito mais difícil aos Estados Unidos competir com a China e a Rússia sem colaboração europeia. Não será só a Europa a sofrer o choque da realidade.

Por outro lado, convém lembrar que mesmo quando o poderio da América estava no pico — o famoso “momento unipolar” de Charles Krauthammer —, muitos Estados souberam resistir às pressões americanas. E se os Estados Unidos permanecem a grande potência militar e económica, a credibilidade da sua política externa está a sofrer uma inegável corrosão.

As situações extremas podem ter os seus méritos: deixamos de poder continuar sentados à espera que os astros tragam boas novas. Grande ironia seria que ?Trump ajudasse a Europa a entrar na “idade adulta”.