O mundo mudou e isso não merece reflexão?

Estou à vontade para dizer que até a frustrante realidade da UE é preferível àquilo que Trump ou Putin têm para propor ao mundo.

O mundo que conhecemos desde a Guerra está a acabar. Não é impossível, aliás, que olhemos para trás e cheguemos à conclusão de que foi esta semana que ele acabou.

O que significa quando Trump sugere que a União Europeia é o seu principal inimigo? Ele está a pensar na União Europeia que tem proteções comerciais, ambientais e laborais que aborrecem algumas indústrias americanas claramente predatórias — mas é mais do que isso. Para Trump, como para Putin, há uma grande diferença entre a União Europeia e a visão do mundo ideal que eles têm na cabeça.

Para Trump, como para Putin, o mundo ideal é dividido em caixas — a que chamam “nações”, mas até isso é enganoso. Cada uma dessas caixas é uma esfera de influência, um mercado cativo, um ecossistema que se pode espremer até ao limite, uma vizinhança onde se pode interferir como se deseja — um império, no fundo. Dentro de cada uma dessas caixas há um homem forte. Em conjunto, cinco ou seis homens fortes mandam no mundo.

A União Europeia é uma aberração nesta visão do mundo, porque a União é um conjunto de países que criam um espaço político, social e económico mais integrado do que qualquer organização internacional, sem chegar a ser uma nação. Além disso, a União Europeia é uma realidade recente: a sua forma constitucional mais recente, o Tratado de Lisboa, não tem dez anos; o euro não tem 20; o próprio nome União Europeia não tem trinta. Se for possível a União desenvolver-se e democratizar-se, a sua mera existência será uma ameaça à mundivisão de Trump e de Putin, e uma inspiração para outras organizações regionais e internacionais como o Mercosul, a ASEAN, a própria ONU. Por isso Trump considera a União, podemos estar certos, o seu pior inimigo. Por isso, e porque Putin acha o mesmo — e não há nenhum fascistóide na Europa ocidental e nos EUA que não adore Putin e não deseje fazer o que ele ordena, com pagamento (como Salvini ou Le Pen) ou sem ele.

E isso deve levar-nos a uma reflexão importante, na Europa, em Portugal, e em particular à esquerda — à qual me dirijo porque me aflijo com a dificuldade que temos tido, na minha família política, em encarar de frente as consequências daquilo que se está a passar. Quem devem ser os nossos interlocutores? Em que modelo devemos concentrar o nosso esforço político? Numa Rússia que é o país do capitalismo mais desigual do mundo? Nos EUA, que se preparam para dar um grande salto para o passado logo que Trump domine por completo o seu Supremo Tribunal? Ou numa União Europeia que, mesmo com todos os seus defeitos e qualidades, ainda é vista por Trump e por Putin como um obstáculo ao mundo que eles querem, e por isso mesmo representa uma possibilidade de termos uma palavra a dizer nesta era de globalização? Faço este apelo à reflexão por todos os progressistas: devemos explorar a possibilidade de fazer da Europa um modelo alternativo a estes autoritários cleptocratas, mesmo sabendo que o caminho não é fácil, ou devemos desistir já, fechando a porta à UE, e fazendo o maior favor do mundo a Trump e Putin?

Há muitas razões para criticar a UE e estar frustrado com ela. Da tragédia dos refugiados no Mediterrâneo à perigosa negligência com que se deixou instalar o fascismo contemporâneo na Hungria, estive sempre entre os primeiros a lançar o alerta quando a UE não agia, ou agia mal. Por isso mesmo estou à vontade para dizer que até a frustrante realidade da UE é preferível àquilo que Trump ou Putin têm para propor ao mundo, e que a escolha de uma esquerda que queira ser consequente nos tempos que correm e no mundo que temos hoje não pode ser o campo da desistência em relação à União Europeia, mas do campo da transformação da UE em qualquer coisa mais próxima dos nossos desejos. É possível uma União Europeia diferente da que temos hoje, sim, melhorada, mais democrática, mais coesa, mais ambientalmente responsável. É possível essa Europa, com apenas uma condição — se os cidadãos europeus a exigirem. E por isso o lugar da esquerda tem de ser a mobilizar os cidadãos para exigirem essa Europa melhor, e não a fechar as portas à Europa para criar o mundo dos sonhos de Trump e de Putin.

Infelizmente, acho que esta reflexão não foi ainda levada a sério entre nós, porque há uma rigidez sectária que impede que ela se faça. Mas a rapidez com que o mundo está a mudar não se compadece com contemporizações e taticismos enquanto tudo já arde.

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