A fronteira na Irlanda continua a travar o "Brexit"

Theresa May pede à UE que "evolua"; Bruxelas diz que não há alterações que justifique uma evolução e que também não vai negociar o Livro Branco.

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Polícias da Irlanda do Norte e da Irlanda em St Belleek, na Irlanda do Norte Clodagh Kilcoyne/Reuters

A fronteira da Irlanda continua a ser um problema central nas discussões do “Brexit”, com uma solução que seja aceitável quer para britânicos e europeus, quer para os unionistas e republicanos na Irlanda do Norte tão longínqua como sempre.

Todos defendem uma solução em que não exista uma fronteira física entre as duas partes da Irlanda, e no seu discurso em Belfast, que visitou esta quinta e sexta-feira, May repetiu que a ideia de uma fronteira é “inconcebível”.

Mas apesar de ter concordado com um “backstop” - um mecanismo de salvaguarda - para esta questão caso o Reino Unido e a União Europeia não cheguem a acordo sobre o “Brexit”, Theresa May pediu à União Europeia que “evolua” na sua posição.

“Cabe agora à União Europeia responder – não voltar a cair em posições prévias que já se provou serem impraticáveis, mas evoluir na sua posição”, disse May.

Do lado da União Europeia, porém, a resposta não foi muito animadora. Ninguém põe em causa o argumento repetido por Theresa May, de que o retorno de uma fronteira física depois de o Reino Unido sair da UE é “uma ideia simplesmente inconcebível”. E é precisamente por isso que os parceiros europeus insistem que o acordo de saída preveja um mecanismo de salvaguarda para assegurar que esse obstáculo não existirá no futuro, independentemente do enquadramento que vier a ter a relação futura entre os dois blocos.

Esta sexta-feira, o negociador da Comissão Europeia para o “Brexit”, Michel Barnier, disse que ambas as partes precisavam de “desdramatizar” a questão da fronteira — que é o ponto mais sensível das conversações para a conclusão do texto jurídico do tratado para o divórcio amigável. Um primeiro rascunho desse documento foi divulgado em Março: Londres e Bruxelas concordaram em 80% dos parágrafos. Mas os restantes 20% estão longe de reunir o consenso, e o maior impasse tem a ver com a questão da fronteira irlandesa.  

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Na linguagem mais diplomática possível, Barnier disse que não percebia a razão por que May estava agora a tentar renegar o compromisso fixado nessa altura, que levou ao estabelecimento de uma cláusula de salvaguarda no acordo de saída. Essa cláusula diz que até ser encontrada uma solução operacional que respeite os termos do acordo de paz de Sexta-feira Santa e garanta a invisibilidade da fronteira, as regras da União Europeia (mercado único, união alfandegária, livre circulação) continuarão a ser aplicadas em todo o território da ilha irlandesa — isto é, a Norte e Sul da fronteira.

Para Barnier — e os 27 ministros dos Assuntos Europeus que reuniram em Bruxelas para discutir o processo negocial — não houve qualquer evolução na posição britânica relativamente à fronteira que permita concluir com confiança que o problema está resolvido (e que a cláusula de salvaguarda seria assim desnecessária).

Como frisou o diplomata europeu, os 27 deixaram claro desde o princípio que a inexistência de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda era um princípio básico e que tinha que estar consagrado no acordo de saída. “Nós sempre dissemos que estamos abertos a todas as soluções, desde que elas preservem o objectivo que ficou definido no início das negociações”, lembrou. 

“A nossa obrigação é ter uma solução legalmente operacional para a fronteira. Fizemos um trabalho criativo e flexível para responder a este ponto, que é o mais grave e o mais difícil de toda a negociação. Se depois do ‘Brexit’, no quadro da futura relação, for possível encontrar uma solução melhor, então ela será adoptada e este ponto será substituído”, afirmou.

Essa posição vai contra o que pretende o Reino Unido, que é atirar a solução do problema da fronteira para a discussão da relação futura entre os dois blocos. No seu Livro Branco, o Governo britânico propôs uma parceria económica que mantinha o Reino Unido dentro do mercado comum para bens e mercadorias. Mas como insistiu Barnier esta sexta-feira, Bruxelas não está a negociar o Livro Branco — esse documento apenas expõe as ideias que Londres tem sobre o tipo de acordo comercial que pretende assinar com a UE no futuro.

“Queremos que a parceria futura seja o mais ambiciosa possível. Mas nesta fase das negociações, o que precisamos é de clareza e certeza jurídica, para fechar o tratado jurídico e assegurar que a saída do Reino Unido ocorre de forma ordenada”, frisou. O que implica a consideração do “backstop”: sem ele, não há acordo de saída, ou período de transição para discutir a relação futura. Os britânicos ficarão de fora do clube a 31 de Março de 2019, com o mais duro dos “Brexits” possível — no deal.

Para os europeus, além de política, a questão da fronteira é técnica: quando o Reino Unido abandonar o bloco e se converter num país terceiro, os Estados membros com quem tem fronteiras terão de cumprir os procedimentos e levar cabo os controlos de pessoas e mercadorias que vão aceder ao espaço comum. Essa é a forma de garantir a segurança e a protecção dos consumidores europeus — “temos controlos nas fronteiras externas em todo o lado, em Itália, na Finlândia, ou em Portugal”, apontou Barnier.

Uma fronteira alfandegária sem fronteira

Uma solução tecnológica que permitisse uma fronteira sem controlos físicos, na qual o Governo britânico está a trabalhar, também ainda não se concretizou. May teria, resume a revista New Statesman, criar algo que nunca foi feito antes: criar uma fronteira alfandegária sem uma fronteira.

A interdependência económica das duas Irlandas é a preocupação mais imediata: esta assenta em pequenas e médias empresas, que não teriam margem para se defender caso a saída do Reino Unido aconteça sem um acordo que mantenha a zona sem fronteira ou com cooperação fácil.

Para 51% das empresas exportadoras da Irlanda, mais de metade das exportações vão para a Irlanda do Norte. Mas apenas 8% das empresas têm planos de negócio para o período após o “Brexit”.

A fronteira de 500 quilómetros (onde há pelo menos 32 pontos de passagem) tornou-se praticamente invisível em 1998, quando o acordo de paz de sexta-feira santa pôs fim a três décadas de violência entre a maioria pró-britânica (unionista) e a minoria nacionalista irlandesa (republicana). Neste período morreram mais de 3600 pessoas.

“Se houver uma fronteira, vamos voltar aos Troubles”, como ficou conhecido esse período de violência, diz Margaret, uma idosa da cidade de Newry, na Irlanda do Norte, a dez minutos de onde seria esta fronteira.

Esta visão de um regresso a violência em larga escala não é repetida por muitos, que temem em trazer esse espectro para o campo das hipóteses. Mas a maioria das vozes ouvidas nestes artigos garante que qualquer infra-estrutura que se assemelhe a um controlo será atacada. “Se puserem aqui uma fronteira, os dissidentes vão rebentar com ela à bomba”, disse Sid Johnson, de 68 anos, à Reuters.

“Se houver um poste com uma câmara na fronteira, este vai ser um alvo”, disse um responsável local à New Statesman.

Do outro lado, um artigo da Time nota como o “Brexit” fez azedar as relações entre a República da Irlanda e o Reino Unido: do lado da Irlanda, voltaram a ganhar importância pequenas irritações com a pronúncia errada do cargo do taoiseach  (o primeiro-ministro), representações caricaturais da política irlandesa, ou de muitos britânicos não terem ideia onde é a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda se lhes for pedido para a desenhar num mapa da ilha. Na Irlanda, disse um responsável sob animato à Time, “o ‘Brexit’ despertou um músculo de memória que estava adormecido”.

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