Na jaula das hienas

Num relato moderno para o seu tempo, entre a crónica jornalística e a prosa poética, Valle-Inclán mostra-nos uma outra visão da guerra.

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Com A Meia-Noite. Visão Estelar de Um Momento de Guerra, o escritor galego alterou o rumo artístico da sua obra

O prolífico dramaturgo, poeta e escritor galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), filho tardio da Geração 98 (Miguel de Unamuno, Pio Baroja, Azorín, entre outros), representante do Modernismo espanhol, é um dos autores mais importantes da literatura hispânica da primeira metade do século XX. Originário da pequena aristocracia rural galega, desde cedo se dedicou à literatura — publicando muitas das suas obras em fascículos, em jornais e em revistas, antes de os fazer publicar em livro. Foi talvez por causa dessa sua veia “jornalística” que o governo francês o convidou, em 1915, a visitar a frente de guerra ocidental (a frente do Somme) e a escrever várias crónicas — o intuito era serem publicadas simultaneamente em jornais de vários países. Este convite chegou-lhe por intermédio do cônsul francês em Espanha — o seu amigo, tradutor e grande admirador, Jacques Chaumié — e não é dispicienda a ideia de que tenha sido feito por sua influência. Valle-Inclán saiu de Madrid no final de Abril de 1916, e instalou-se, em Paris. Foi nos dias do final de Maio e do começo de Junho que o escritor galego visitou a frente de guerra, as trincheiras, e voou sobre as linhas alemãs. “Os ecos da guerra enlaçam-se desde a costa nortenha até aos montes alsacianos!”

Os relatos desta viagem aventurosa, escritos em duas partes, foram publicados alguns meses mais tarde, no jornal El Imparcial, em forma de folhetim: aconteceu entre Outubro de 1916 e Fevereiro de 1917. Meses depois, uma versão da primeira parte (consideravelmente reescrita), titulada A Meia-Noite. Visão Estelar de Um Momento de Guerra, foi publicada como livro.

Conta Valle-Inclán na breve nota que antecede a narrativa, que era seu propósito condensar neste livro os variados e “diversos lances de um dia de guerra em França”. Mas para o fazer teria de estar em “diversos lugares” ao mesmo tempo, por isso todos os relatos “estão limitados pela presença geométrica do narrador”. Mas o escritor galego parece ter resolvido bem este problema de carácter formal ao adoptar uma espécie de visão desde o alto — para isto terá sido inspirador um reconhecimento aéreo da frente feito a bordo de um avião militar, que muito o terá impressionado (conta-se na introdução a este livro, da autoria do tradutor, que o voo incluiu o “sector de Ypres”, onde o Corpo Expedicionário Português viria a participar, em Abril de 1918, na chamada Batalha de La Lys).

Valle-Inclán descreve a vida na frente de batalha, numa atmosfera lúgrube e funesta: as aldeias bombardeadas, as trincheiras, a morte. Em capítulos muito breves (raramente mais do que duas páginas), faz uso de múltiplos protagonistas — que aparecem, dizem por vezes uma ou duas frases, e logo desaparecem — num discurso fragmentado, e numa multiplicidade de cenários em que a única coisa que têm em comum é o cheiro da morte, como se aquela “guerra de trincheiras” se travasse dentro de uma “jaula de hienas”. “Dos bosques montanheiros da região alsaciana até à costa brava do mar nortenho, espreitam os exércitos agachados nos fossos do seu entrincheiramento, onde fede a morto como na jaula das hienas.”

É notório que ao escritor galego não interessa uma prosa épica, a narrativa ampliada de grandes batalhas, as grandes movimentações de exércitos com as consequentes grandes vitórias. Interessam-lhe os anónimos, os populares que são apanhados nas margens do conflito, os hospitais, as aldeias destruídas, os pequenos movimentos dentro das trincheiras, os mortos de ventre inchado e pernas negras que dão à costa e que os vivos não enterram mas deixam que “o vento os leve”, interessa-lhe sobretudo como nos relacionamos em ambiente trágico, interessa-lhe quem são aqueles marinheiros que rezam e que sonham. “São pescadores da Normandia e da Bretanha, moços crédulos, de olhos claros, almas infantis valentes para o mar, abertas ao milagre e temerosas dos mortos. Muitos rezam em voz baixa, lembrando-se das aparições nos cemitérios e nos pinhais das suas aldeias.”

Valle-Inclán foi autor de uma prolífica produção literária, ampla e por vezes complexa, usando todos os géneros mas sem nunca se cingir às suas normas. Com este A Meia-Noite. Visão Estelar de Um Momento de Guerra, num registo entre a crónica jornalística e a prosa poética, o escritor galego, mais uma vez, alterou o rumo artístico da sua obra; e iria torná-lo a fazer uns anos mais tarde com a publicação desse romance inovador que foi Tirano Banderas.

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