Caiu o Muro de Berlim? Vai para rodapé de capa
O simples facto de um jornal como o Expresso relegar para rodapé de capa a queda do Muro de Berlim mostrava todo um pensamento: o de José António Saraiva.
Há um mês, quando nos despedíamos de Lucília Santos (cuja presença, para lá da morte física, continua viva entre nós), um dos textos que celebravam a sua memória dizia que ela “sabia mais de jornais, tinha mais sentido de notícia, mais espírito crítico, vivia mais a actualidade (…) do que a maioria dos jornalistas.” Escreveu-o José Manuel Fernandes, antigo director do PÚBLICO. Dias depois, um outro artigo vinha dar-lhe razão. Sábado dia 23, no semanário Sol, o seu ex-director (agora “conselheiro editorial”) e também ex-director do Expresso José António Saraiva escrevia isto (em “A Lucília”): “Um dia, depois do célebre confronto entre polícias no Terreiro do Paço que ficou conhecido como os ‘secos e molhados’, estranhou eu não colocar qualquer referência ao assunto na capa do Expresso. Perguntou-me: ‘Não põe nada sobre os secos e molhados?’ Expliquei-lhe que, como ela sabia, privilegiava na 1.ª página a surpresa e as notícias exclusivas. Ora a notícia estava em toda a parte, e sobre ela não tínhamos quaisquer novidades. Ela não respondeu e com esse silêncio disse tudo. Acho que acabei por mudar mesmo a capa e inserir uma referência ao caso. Talvez uma fotografia.” É verdade. Mas não foi só uma fotografia. Foi uma caixa com fotografia (“Carro de água dispara sobre os guardas da PSP”) e o início da notícia (“Polícia carrega sobre polícias”), que continuava na última página com mais três fotos. Isso na edição de 22 de Abril de 1989, no Expresso n.º 860.
Mas é em 11 de Novembro desse mesmo ano, na sua edição n.º 889 (já a Lucília estava no PÚBLICO), que o Expresso dá a prova suprema desta peculiar forma de encarar a função jornalística. Dia e meio depois de cair, com estrondo mundial, o Muro de Berlim, símbolo máximo da Guerra Fria, o Expresso tem como títulos destacados da sua primeira página “João Soares quer estar presente no último comício… e encontra-se com Savimbi” (o deputado socialista estava em Pretória, a recuperar da célebre queda de avioneta no sul de Angola), “‘Interviu’ leva Cavaco à TV” (era o caso Tomás Taveira), “Piristas admitem abandonar o CDS” e, por último, “Abecasis ameaça embargar Centro Cultural de Belém”. Tudo “surpresas” e “notícias exclusivas”, naturalmente. Na base da página, e com tratamento semelhante ao dos “secos e molhados”, embora em formato bem mais reduzido, surgia então a queda do muro alemão. Um homem com escopro e martelo a picar o muro, na foto, e ao lado o título “O povo mais feliz do mundo” (uma citação atribuída aos “milhares de alemães” que festejavam “desde quinta-feira a abertura das fronteiras entre a RDA e a RFA”). Só o título de uma breve, a encimar a coluna da direita (“24 horas em notícia”), dava conta do facto mais relevante da década: “Governo português saúda queda do Muro de Berlim.”
O Expresso não tinha só isto sobre Berlim. Havia mais, no caderno Internacional, embora centrado sobretudo nas promessas dos comunistas alemães (fronteiras abertas e eleições livres). Mas o simples facto de um jornal relegar para rodapé de capa a queda do Muro de Berlim mostra todo um pensamento. Que foi o que levou José António Saraiva a forrar a sua carreira de “surpresas” e “notícias exclusivas” (que faria ele com o 11 de Setembro, do qual não teria “quaisquer novidades”? Outro rodapé?) e, por oposição, ajudou à criação do PÚBLICO, onde os temas de relevo mundial tinham direito a capas inteiras e a dezenas de páginas no interior. E onde todos nós (Lucília incluída), deixámos finalmente de ter vergonha do que surgia nas bancas.