O meu sangue não é assim tão puro

A nacionalidade não é limitada por uma cor e muito menos por uma etnia. Não existe uma barreira física ou ideológica entre a nacionalidade francesa e ser-se africano.

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Jean-Paul Pelissier/Reuters

Foi necessário a França ganhar o Campeonato Mundial de Futebol para que algumas pessoas — certamente até hoje desprovidas da noção de existência de contacto inter-racial  — percebessem que qualquer pessoa tem características antropológicas provenientes de todos os cantos do mundo. E logo nós, que somos portugueses e por isso geneticamente talassocratas.

De verdade que há na selecção francesa descendência do Mali, do Senegal ou até da Catalunha — que também já foi gaulesa? Mas, então, do que estava à espera quem disparou baboseiras racistas sobre os 23 franceses? Pensariam eles que o sangue humano fosse fabricado gota a gota em laboratórios nacionalistas vedados à tenebrosa hipótese de contacto e consequente infecção entre o seu querido "sangue puro ocidental" e o sangue alheio (aos seus olhos sujo) como o negro, asiático ou ameríndio? Terão eles alguma vez julgado que o nosso ADN fosse constituído por uma mescla de diferentes raças e sangues? E logo nós, portugueses e por isso filhos do mundo.

Tragam um pano molhado a estes senhores. Cai-lhes tudo ao saber que, apesar de dizerem ser descendentes directos de Carlos Magno, afilhados de Leopold Rothschild, quinquagésimos netos bastardos de D. João V, brancos e "puros", são agora — segundo consta — também portadores de sangue africano e ameríndio. Exactamente. Caros senhores racistas: o sangue que vos chega ao longínquo dedo mindinho do pé e vos irriga o cérebro é composto por partículas oriundas de todo o mundo. E logo nós, portugueses: um povo que tem entre os avós gente de todos os cantos do mundo.

O imaculado "sangue português" que tanto hasteiam nada mais é do que a mistura de sangue entre os romanos que por cá civilizaram, os cartagineses que por cá fizeram comércio ou os hispânicos com quem desde sempre partilhamos e lutamos por terra. Junta-se ainda, a partir de 711, uma enorme percentagem de ADN muçulmano. E engane-se quem pense que foi desde 711 até à conquista do Algarve sempre à bulha com os mouros: está errado. Integrámo-los na sociedade portuguesa, tal como está documentado historicamente. A partir da conquista de Ceuta já se sabe o resto, e mais uma vez engane-se quem pense que ninguém com sangue africano ou americano chegou à metrópole e governou, pintou e escreveu: Marquês de Pombal tinha ascendência directa de índios brasileiros, Almada Negreiros e Padre António Vieira tinham genes africanos.

Ora, o que eu quero dizer com isto é que o sangue português é, e ainda bem, uma riquíssima e gloriosa mistura entre sangue ocidental, africano, ameríndio, muçulmano, goês. Trata-se, afinal, do sangue globalizado e mundial. 

Por isso — e voltando ao início da questão —, quando leio que a selecção francesa não é realmente francesa por ter uma maioria de jogadores de etnia africana, apetece-me pedir-lhes educadamente ou que se instruam ou que não falem. A nacionalidade — e, principalmente, a dos países que se voltaram para o mar — não é limitada por uma cor e muito menos por uma etnia. Não existe uma barreira física ou ideológica entre a nacionalidade francesa e ser-se africano. No nosso caso não existe o português branco de primeira e o português negro de segunda: há apenas o português.

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