O País dos Arquitectos (Lado B)

Por momentos, a edição do PÚBLICO sobre a Representação Portuguesa na Bienal de Veneza fez-nos acreditar que, com o mundo a seus pés, Portugal era o nirvana da arquitectura. Lamentavelmente, e fora desta estimulante cápsula cultural, a prática disciplinar do Portugal “pós-austeridade” insiste em expor-nos a uma realidade inteiramente diferente. Um mundo dominado por pequenos egos e vaidades, progressivamente desprovido de ética e em que a redenção dos protagonistas assenta por vezes em formas de exploração do trabalho que dificilmente encontram paralelo noutros serviços. Perante isto, e coincidente com a recente promulgação de um abusivo e infeliz diploma que permite à engenharia assinar pela arquitectura, a profissão no “País dos Arquitectos” pode estar estilhaçada de forma irreversível. Não sei se alguma área da sociologia se dedica ao estudo da disfunção das profissões quando atingem a falência ética, mas este é certamente um caso a merecer a atenção dos observatórios.

A base do problema assenta desde logo na destruição do valor do trabalho pelos próprios arquitectos, no culminar de décadas de guerras de honorários. Nos anos 90, funcionava ainda a famosa Tabela de Honorários do M.O.P. (Ministério das Obras Públicas) para arquitectos e engenheiros, entendia-se um desconto 20% como ofensivo para a classe projectista. Na década seguinte passou a ser habitual. Hoje, os arquitectos (premiados ou não) fazem descontos de 60 a 80%. A juntar-se a isto, cada governo foi acrescentando ao projecto uma panóplia de pequenos requisitos burocráticos, muitos deles inúteis e onerosos, sempre a subtrair aos honorários-base, e que vão desde fichas de habitação, a certificações energéticas, a planos de segurança em obra. A esta sangria, soma-se ainda a inevitabilidade do mercado exigir em breve e por norma que o projecto seja integralmente em BIM (3D).

Hoje, é quixotesco um jovem arquitecto aspirar a constituir família, ter casa própria e o conforto razoável de um normal quadro profissional na nossa sociedade. O excesso de oferta e a desregulação pura e simplesmente não o permite. Imagine-se que este “País dos Arquitectos” era uma espécie de “Aldeia dos Estrumpfes” em que os restaurantes eram todos de 2 ou 3 estrelas do Michelin, mas cobravam preços de taberna. Os clientes e a crítica estavam delirantes com a magia deste estranho fenómeno geográfico e as recensões culinárias inundavam a imprensa internacional. Mas as portas de serviço destes restaurantes eram desumanas e tristes, já que o encanto e o prestígio da profissão ficavam exclusivamente com os chefs. Os empregados, exaustos e indiferentes aos prémios, estavam condenados em perpetuidade a remar o barco por 800 Euros ao mês. Para acelerar a falência deste ciclo, os escassos ‘jovens turcos’ que conseguiam escapar a esta fatalidade e abrir o seu próprio espaço, ofereciam preços ainda mais baixos, pagando ainda menos à sua mão-de-obra, para uma qualidade em muito equivalente à dos seus mestres. Sem prejuízo dos contornos Dickensianos deste meu excurso literário, até nos investidores internacionais constato um fenómeno perverso. Chegados a Portugal com disponibilidade para pagar honorários europeus, quando confrontados com a concorrência autofágica dos indígenas, rapidamente se nivelam pela bitola dos Estrumpfes.

Este estado da arquitectura (e das engenharias) só pode ser invertido quando se reinscrever na lei e se promover nas práticas pública e privada uma tabela razoável que seja fiscalizada pelas respectivas ordens profissionais, tal como a que a Alemanha — país da técnica — impôs e mantém, mesmo indo contra as directivas comunitárias, argumentando (e bem) com a defesa do interesse público. Esta sim, é uma guerra que deveria unir arquitectos e engenheiros. Entre o limiar da pobreza e a emigração forçada, não sei quanto tempo mais os projectistas conseguirão continuar a oferecer este serviço gourmet em saldos. Creio por isso que seria um dever geracional das ordens profissionais exigirem aos governos e à CE a reposição da dignidade da profissão de projectista, tal como existe nas economias mais competitivas da OCDE e nos próprios EUA.

É certo que nem tudo são más notícias e, ainda que pontuais, recentes variantes à prática vigente dão-nos motivos de esperança. Nos últimos dois anos, assistimos em Portugal a alguns concursos de promotores internacionais, com prémios razoáveis e honorários pré-definidos, nalguns casos com júris internacionais e actas divulgadas a todos os concorrentes, como é também prática no norte da Europa.

O Leão de Ouro de Eduardo Souto de Moura não só é magnífico, como inteiramente merecido. Mas neste momento seria fundamental reorientar uma parte substancial do discurso da arquitectura e das engenharias para a dignificação da prática do projecto, por forma a garantir a excelência a que a nossa sociedade, como um todo, deve exigir para a cidade e para a paisagem.

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