Eu e tu e nós e vós e eles

Recordações de Os Mutantes, e o crime da prostituição infantil que o provocou; lembranças de outros crimes. Segunda de uma série de quatro crónicas de mulheres do mundo da cultura.

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Quando me propuseram escrever um texto para estar aqui, eu disse logo que sim. Trinta e quatro anos — a minha cabeça ficou como as cabeças da banda desenhada quando se quer mostrar que estão a pensar em mil coisas ao mesmo tempo.

Mais fácil ir por partes.

1. Não foi exactamente há 34 anos, mas anda lá perto. Estava marcado um debate a propósito de um meu filme, Os Mutantes, iam participar algumas pessoas, não me lembro já de todas. Lembro-me de que uma era o Pedro Strecht, outra o Laborinho Lúcio. Eu também participava. Na altura insisti para que também fizesse parte da mesa do debate um dos actores do filme, o Alexandre Pinto, que era ainda um adolescente e vivia na Casa do Gaiato em Loures. O Alexandre era um rapaz muito inteligente e muito sensível, um dos maiores actores com quem já trabalhei e devo-lhe imenso. Uma percentagem gigante da energia desse filme veio dele. O que ele teria para nos dizer naquele debate seria de ouvir e calar, engolir e aprender.

Esse filme tinha começado a ser construído ainda naqueles tempos do cavaquismo, mas, como de um modo geral levo meses em pesquisa antes de começar a escrita, quando o filmei já não eram esses tempos, mas pouco ou nada tinha ainda mudado em relação ao tema de que falávamos.

Não tenho espaço aqui para falar do que aprendi nas pesquisas que fiz sobre as instituições onde se guardavam as crianças e adolescentes. O meu trabalho é dos anos 90. E o filme acabou por se debruçar sobretudo sobre as crianças e adolescentes que dependiam do Ministério da Justiça. Não tenho aqui espaço para falar do que aprendi, mas também me esforço para não ter memória. Como artista, tenho que passar a outra coisa. Durante muito tempo culpei-me por isso e por não ficar activista de cada tema de que falo em alguns filmes. Mas já aceitei. Tem que ser assim.

Não gostei de quase nada do que vi; as coisas mais brutais não estão nesse filme de que falo. Muito do que se passava, nessa altura, estava atrás de paredes e muros, e chaves e portas. Mas havia muito à vista de todos. O lugar da prostituição infantil, infantil mesmo, neste caso masculina, era nada mais nada menos do que nos jardins em frente ao Palácio de Belém. Passava-se de noite, mas a noite também faz parte do dia. Não tenho explicação para isto ter sido possível, e ali. Eu usei a palavra “prostituição”, mas não a devia ter usado. A palavra certa é crime. Crime contra as crianças, crime contra a vida, crime contra a esperança. Final do século XX, jardins de Belém.

Mas voltando ao debate. Todos fomos apresentados, teremos dito cada um alguma coisa breve, o Alexandre também. Quando o debate já ia mais lançado, olhei para o Alexandre e ele estava todo dobrado; estávamos em cadeiras em cima do palco e ele dobrado sem se poder ver a sua cara. Pensei que me tinha enganado, que não devia ter insistido na sua participação porque pouco lhe importava estar ali e tinha adormecido.

O debate decorreu sem que ele mudasse de posição, e quando chegou a hora de acabar, acabou. Levantámo-nos e há os cumprimentos do costume, vem este e aquela dizer ainda alguma coisa. Os barulhos das nossas cadeiras, e por aí fora. Olho para o Alexandre e vejo que ainda não se mexeu. Já era demais. Fui ter com ele para lhe perguntar se estava maldisposto. Ele levanta a cabeça e olha para mim com uns olhos encharcados, a T-shirt toda molhada de lágrimas. Tinha conseguido chorar aquelas lágrimas todas sem se mexer nem soluçar.

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O actor Alexandre Pinto em Os Mutantes (1998), de Teresa Villaverde JBA Production

Esteve hora e meia assim — e ninguém viu. Disse-me: “Eu estou assim porque era tanto o que eu tinha para dizer. Por onde é que eu começava? Eu sabia que não ia conseguir dizer tudo o que queria.”

Não sei o que lhe respondi, provavelmente nada. Ajudei-o a sair dali à pressa fazendo com que o importunassem o menos possível.

2. Com o fim da União Soviética, havia muitas armas à solta pelo Leste europeu, mas era muito mais seguro, e também mais rentável, traficar mulheres do que armas. É mais fácil passar uma fronteira com uma mulher do que com uma Kalashnikov. Há já bastantes anos, mas já século XXI, fiz também um trabalho sobre isso. Essas mulheres eram traficadas para ser escravas sexuais contra a sua vontade. Umas eram raptadas logo ainda no seu país, outras eram enganadas pensando que estavam a ir para um país onde pudessem ter um trabalho, e depois eram-lhes roubados os documentos, e entregues às máfias da escravatura sexual.

Isto também acontecia em Portugal. Quando as redes eram encontradas, por não terem papéis, as mulheres eram recambiadas para os seus países, onde já eram esperadas por novos traficantes. A fuga punha em risco as famílias, que eram ameaçadas, e que os traficantes sabiam onde viviam. Matá-las, por exemplo, mesmo em Portugal, era fácil. Tudo ilegal, mulher encontrada morta à beira de sabe-se lá onde. Não tem papéis, ninguém sabe quem é. As famílias não sabem a que país foram parar e não as conseguem procurar. O corpo não é reivindicado por ninguém e acaba a história.

Se cada história fosse escrita, tinha que haver uma descrição para cada coisa. O olhar de cada pessoa. O inspector que entra numa cave e vê lá uma mulher. O que é que ele pensa quando olha para ela, e o que é que ela pensa quando olha para ele. Vem matá-la, salvá-la, bater-lhe? Ele quando olha para ela pensa que ela é parecida com alguém da sua família? Com uma vizinha que foi morar para outro país? Tem vontade de lhe bater? De a abraçar? Percebe que ela está presa? Vai salvá-la? Olham-se? É tudo muito rápido e nem vêem a cara um do outro e ela é atirada para uma carrinha à noite? No campo? Verão? Inverno? O filho do inspector faz anos e ele só olha para o relógio?

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A actriz Ana Moreira numa cena de Transe (2006) DR

Foi muito duro fazer esse filme. No filme não há inspectores, nem ela é encontrada.

Quem em Portugal defendia essas mulheres era uma organização de religiosas com sede em Espanha. Defendiam com casas-abrigo, documentação. Lembro-me de que uma das casas era bem no centro de Lisboa, clandestina. Portugal, século XXI.

Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava

Podemos encontrar a mulher morta num parque onde costumamos ir, ninguém lhe fechou os olhos e nós lemos-lhe este excerto de Muriel, de Ruy Belo. Ela lá, a olhar para o céu.

3. Daqui a muitos anos pode haver alguém a querer estudar 2024, e para isso pega nos jornais da época, e acidentalmente pode encontrar este texto. E pode-se perguntar: “Mas este não era o ano em que estava a acontecer aquilo?”

É, sim, é esse ano. Aviso-te, pessoa, que o ano ainda vai no princípio e por isso não te posso falar de como vai acabar.

Recuo a 10 de Julho de 1973, dia em que o jornal inglês The Times, pela mão do padre inglês Adrian Hastings, denuncia um massacre executado por soldados portugueses a 16 de Dezembro de 1972 em Wiriyamu, Moçambique, onde os portugueses mataram cerca de 400 pessoas. Homens e mulheres de todas as idades, crianças. Fuzilavam uns à frente dos outros. Queimaram pessoas já mortas e pessoas ainda vivas. Espetaram cabeças decepadas em paus. Transformaram as cabeças em bolas para fazer jogos. O primeiro-ministro António Costa pediu, recentemente, a Moçambique desculpas em nome de Portugal.

Agora vamos imaginar que uma parte de nós, portugueses, 2,2 milhões, tínhamos sido, por algum motivo, cercados por um muro numa área com 41 quilómetros de comprimento e 10 quilómetros de largura. Que, por estarmos cercados há muitos anos, éramos pobres e dependíamos da ajuda de outros países e das Nações Unidas para podermos viver. Imaginem que os soldados que participaram no massacre de Wiriyamu estavam escondidos do nosso lado do muro, que tinham a mesma nacionalidade que nós, que tinham trazido reféns com eles.

Agora passo a palavra a Jorge Moreira da Silva, que explica o que se passa em Gaza muito melhor do que eu, pelas responsabilidades, e experiência, que tem, e porque lá esteve. Ouvi duas suas entrevistas, uma a este jornal e outra ao podcast Perguntar não Ofende, do Daniel Oliveira.

Peço que ouçam o que ele diz.

4. Uma pequena nota sobre Portugal hoje: não passem a vida a comparar a extrema-esquerda à extrema-direita. Já não aquece nem arrefece ninguém continuar a dizer-se isso, mas é grave no sentido em que desvaloriza a importância deste momento em que crescem, por todo o lado, os movimentos que querem destruir os avanços civilizacionais que têm custado tanto a conquistar — e ainda falta conquistar tanto! O André Ventura é um micropeão, faz o que lhe mandam. Acredito que os portugueses vão compreender isso mais cedo do que tarde. Escrevo este texto a partir de um país onde não sei se quando cá voltar o presidente não vai ser, de novo, um homem cor de laranja.

E já que falei aqui de Moreira da Silva (não o conheço pessoalmente, nem nunca o vi), se um dia isto realmente virasse, não tenho a mínima dúvida de que estaríamos do mesmo lado da barricada — e eu é à esquerda do PS que voto sempre, e ele candidatou-se recentemente a presidente do PSD.

5. Aos mais novos: desculpem a porcaria que vos deixámos e ajudem-nos a desembrulhar isto.

6. Aos jornalistas: aprendi com vocês nestes 34 anos. Nunca desistam do vosso trabalho e da vossa independência. Muitos estão a atravessar o cabo das tormentas com tanta coragem; acreditem que têm muita gente do vosso lado. Sou filha de jornalista e tenho muito orgulho nisso.

7. Este texto parece um testamento, mas não é. Tenho um filme a estrear este ano, e tudo isto que eu sou e vejo me está a levar a estudar um homem extraordinário: São Francisco de Assis. Foi ele quem primeiro disse o famoso "todos, todos, todos".

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