A hora do lobo

Quem diria que a antiga Feira Popular iria dar lugar a um Central Park muito melhor, com veredas, caminhos, vegetação luxuriante!

Ir buscá-lo ao aeroporto dá-nos tempo para pôr a conversa em dia. O Zezé viveu na Av. 5 de Outubro e mostrei-lhe Plano Integrado de Entrecampos que engloba os terrenos da antiga Feira Popular.

– Não sei o que é um Plano Integrado (já somos dois!), mas isto é mesmo bom! Edifícios lindíssimos, transparentes, parecem torres de cristal rodeadas de arvoredo, em harmonia perfeita, no meio de jardins! Dizes tu mal da câmara! (suspiro!)

Cinco semáforos depois continuava fascinado:

– Quem diria que a antiga Feira Popular iria dar lugar a um Central Park muito melhor, com veredas, caminhos, vegetação luxuriante! Quando é que a câmara vai fazer tudo isto?

– Para já apenas as hastas públicas estão calendarizadas. Em Setembro!

– E a parte da promoção pública, os fogos de renda condicionada, os jardins, o estacionamento, os equipamentos? Para quando?

– Vê lá se descobres!

Três semáforos depois:

– Nada???

– !!!

Começou a chover.

– Estamos em zona propensa a cheias, como diz o Plano Diretor, não é? Bem me lembro, quando aqui vivia, do drama que era! Quando chovia a água saía a rodos das sarjetas! As tampas saltavam! Vai ser resolvido, finalmente!

Apontei-lhe o parecer da divisão de saneamento.

Dois semáforos depois:

– Diz que o Plano Diretor se enganou e que afinal não é uma zona de cheias – soletrava, de olhos esbugalhados – e” que nos últimos dez anos não há queixas.” Quê? "O mal está nas sarjetas entupidas e que vão resolver o problema das cheias na 5 de Outubro” (afinal há-as!) com... "mais sarjetas”?

Seguiram-se dois semáforos de silêncio.

– Quem vai fazer a gestão disto tudo, lançar empreitadas, adjudicar projetos, marcar o calendário?

– Há-de ser a Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), que viu há pouco tempo os estatutos alargados.

– Com que dinheiro?

– Também não diz! Mas vai ser com o nosso, como de costume ou, melhor, com o dos nossos netos (lembrei o empréstimo do BEI).

– Quem está à frente da SRU?

– O Manuel Salgado: é ele o presidente do Conselho de Administração da SRU.

– Mas não é ele quem tutela a SRU? Vai deixar de ser vereador?

– Estás a brincar? Claro que não! Era ele quem tutelava a SRU e continua a tutelar. A diferença é que agora passa a tutelar-se a si mesmo. É uma espécie de dois em um.

Mais quatro semáforos em silêncio.

Já a noite se adivinhava quando o deixei à porta.

– Volta às imagens de “Central Park, aos edifícios transparentes, ao verde luxuriante, e lê o que vem escrito, em letra muito pequenina. Não reparaste no rodapé!"...

– "Estas imagens são meramente indicativas”, "não vinculam a câmara” (ai não?), “podem ser alteradas”( ai podem?)... (Silêncio) Pode, portanto ser outra coisa qualquer! Então isto é uma imagem virtual!"

O Zezé releu tudo, visivelmente abatido, e concluiu:

– Afinal o que a câmara quer é encaixar o dinheiro da venda dos lotes e o resto que se lixe!

Saiu do carro e atirou os papéis para o lixo.

– Estamos na hora do lobo – murmurou, despedindo-se –, "em que não é de dia nem de noite e os lobos descem aos povoados para dizimar rebanhos”.

Cheguei a casa com a angustiante sensação de estar na pele de um carneiro.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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