Na China ou no Mindelo, o amor acontece

Enquanto se espera pela competição, o Curtas Vila do Conde começa a mostrar o que se tem feito em Portugal – incluindo um lote feliz de produções próprias.

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A River Through the Mountains: uma resposta ao desafio de fazer um filme inventado do zero em 72 horas, numa cidade desconhecida – no caso Hancheng, na China
Curtas Vila do Conde, curta metragem
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Circo do Amor: um pequeno instantâneo fantasista sobre um solitário suburbano que se deixa seduzir pela ideia do circo e pela sua trapezista magnética
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Náufragos: a meio caminho entre o documentário e o filme-ensaio, utilizando voz-off de familiares de vítimas e de sobreviventes de naufrágios de um barco de pesca das Caxinas

A culpa, já se sabe, é da “geração Curtas” que se revelou ao longo dos anos em Vila do Conde – mesmo que o Curtas já não esteja sozinho na divulgação da produção nacional do formato, este continua a ser o “ponto de encontro” em busca da next big thing, do “próximo nome” que siga para o patamar superior. É na noite de terça, com a primeira das cinco sessões competitivas (a terem lugar sempre às 20h), que vai começar a “bolsa de apostas”, embora para todos os efeitos o festival já tenha realmente começado a mostrar produção nacional. Primeiro, com os três novos títulos do programa de produção do Curtas (que voltam a passar no sábado, às 17h); depois, com o Panorama Nacional, este ano “reduzido” a três títulos; finalmente, com a competição de filmes de escola Take One!, onde se mostraram os primeiros títulos de nomes como Leonor Teles ou Salomé Lamas. Inevitavelmente, o Take One! tem vindo a ser alvo de atenção redobrada, sobretudo num ano em que duas curtas de escola, Onde o Verão Vai, de David Pinheiro Vicente, e Amor, Avenidas Novas, de Duarte Coimbra, viram entrada em certames internacionais sem passar pela “casa de partida”. (Voltaremos ao Take One! mais à frente na semana, uma vez exibidos todos os filmes escalados.)

No Panorama Nacional, sem surpresas, vimos três filmes que já vinham do IndieLisboa e de festivais internacionais – Russa, a residência artística de João Salaviza e Ricardo Alves Jr. no Bairro do Aleixo, que esteve em Berlim; Os Mortos, a curta de Gonçalo Robalo que venceu o concurso do Indie; e Anjo, primeira curta do actor Miguel Nunes (Cartas da Guerra), estreada no festival lisboeta. Mas é no programa de produção do Curtas que, para já, está um belíssimo filme: Rio entre as Montanhas, ou A River Through the Mountains. É uma resposta ao desafio de fazer um filme inventado do zero em 72 horas, numa cidade desconhecida – no caso Hancheng, na China, cujo festival convidou o Curtas a enviar uma equipa, formada por alunos do programa de formação Campus/Estaleiro sob a direcção de José Magro.

E o que Magro realiza em apenas dez minutos em movimento suspenso é algo que respira, evidentemente, muito do cinema asiático que tanto influenciou toda uma geração de cineastas: Wong Kar-wai, claro, na urgência, Hou Hsiao-hsien, um pouco, na atenção do olhar, Tsai Ming-liang, menos, na abstracção, Jia Zhang-ke, sim, no ambiente. O que sai deste “micro-conto” sobre o amor é outra coisa – é um filme de descoberta e de urgência, de ter os olhos bem abertos e muito arregalados enquanto se degusta o que se vê, ao mesmo tempo que se tem aquela fuçanguice de querer tudo ao mesmo tempo agora. Tudo à distância de uma câmara que olha para um casal a percorrer as ruas de Hancheng com uma scooter sabendo que tudo está à sua frente, mas também que tudo pode desaparecer num instante.

Isso é algo que Rio Entre as Montanhas tem em comum com Circo do Amor, co-produção luso-francesa que marca o “regresso” ao formato curto de Miguel Clara Vasconcelos depois de uma semi-falhada primeira longa que venceu o Indie em 2017, Encontro Silencioso. Também ele figura “da casa” – vencedor do Curtas por duas vezes (com Documento Boxe e O Triângulo Dourado) –, Vasconcelos faz com Circo do Amor um pequeno instantâneo fantasista sobre um solitário suburbano que se deixa seduzir pela ideia do circo e pela sua trapezista magnética. Mas onde Magro apresenta um abrir de possibilidades (porque há uma scooter em movimento), Vasconcelos fecha-as – porque o seu solitário (Alexander David, ideal no papel deste bom rapaz desajeitado e meio sonhador que se imagina quem não é) está prisioneiro da casa onde mora com a sua mãe doente, da urbanização “planeada” que, por uma ou outra razão, acabou por não se tornar naquilo que se pretendia. Circo do Amor é um pequeno conto em que o ambiente de melancolia resignada diz mais sobre as suas personagens e as suas condições sociais do que qualquer tentativa de “unir os pontos” narrativos – e prova de passagem que Vasconcelos está mais à vontade na curta.

Falta falar de Náufragos, de Pedro Neves. O realizador leiriense e portuense adoptivo, também ele presença regular no festival (do qual foi já vencedor, com Água Fria), continua a sua investigação das pequenas histórias das grandes cidades, num interesse que se cruza com a vontade do Curtas de preservar a memória local da zona vilacondense. Aqui, no entanto, o seu papel é em simultâneo o de tutor e formador, orientando um grupo de estudantes ao abrigo do projecto educativo do Curtas, Animar, numa proposta mais experimental e menos linear mas francamente sedutora. A meio caminho entre o documentário e o filme-ensaio, utilizando voz-off de familiares de vítimas e de sobreviventes de naufrágios de um barco de pesca das Caxinas que transportam a estrutura do filme enquanto as imagens a preto e branco constroem ambiente de modo não-ilustrativo, Náufragos é uma pequena e bonita elegia em tom menor. A fasquia nacional do Curtas 2018, parece-nos, não ficou nada mal colocada.

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