As máscaras da Familie Flöz não escondem: escancaram

Dr. Nest traz de regresso a Portugal uma companhia alemã que anda há mais de 20 anos a espantar o mundo com o seu teatro para lá das palavras. Vai haver baile de máscaras em Almada, mas pode não ser uma festa: a porta que aqui se abre dá para um manicómio.

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Valeria Tomasulo

Uma bata médica é uma bata médica é uma bata médica até se transformar numa camisa-de-forças: sempre foi assim tão óbvio que são verso e reverso da mesma medalha (o duro protocolo do internamento psiquiátrico, ou, mais genericamente, das relações de poder entre médico e doente) ou este é o tipo de evidência a que só se chega depois de abrir a boca diante das manobras de ilusionismo, encantamento e prestidigitação de uma família de artistas como a Familie Flöz?

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As máscaras da Familie Flöz escancaram a a vizinhança entre a normalidade e a não-normalidade no huis-clos de um manicómio: Dr. Nest Valeria Tomasulo

Há muitos anos que esta companhia fundada por dois alunos da Folkwang Hochschule de Essen, a única instituição de ensino alemã exclusivamente dedicada ao teatro físico (a mesma que formou Pina Bausch, por exemplo), anda a fabricar ovos de Colombo como o que vemos roubar o palco logo no início deste Dr. Nest que a traz de regresso a Portugal, a convite do Festival de Almada (segunda-feira, dia 16, às 22h, no Palco Grande da Escola D. António da Costa). Mais exactamente desde 1994, o ano em que redefiniu o teatro de máscaras com Über Tage, espectáculo arrancado a uma das paisagens mais duras da experiência colectiva alemã – tinha lugar numa mina de carvão a céu aberto em Bochum, em plena Bacia do Ruhr, o coração industrial e proletário do país – a que acabaria por ir buscar o nome, “Flöz”, uma camada específica do solo rica em minerais e biomateriais.

Por um completo acaso, é não muito longe daí, em Duisburgo – onde hoje se concentram todos os altos-fornos que sobreviveram à morte lenta da indústria pesada, porque os outros se extinguiram entretanto –, que encontramos a Familie Flöz a poucas semanas de instalar em Almada o seu manicómio de bolso (há uma regra no trabalho da companhia: o cenário de cada nova produção tem de caber na pequena carrinha que agora vemos estacionada à porta do Hotel Plaza). Como em espectáculos anteriores (Ristorante Immortale, de 1998, o seu primeiro grande sucesso internacional; ou Teatro Delusio, de 2004, que há um ano abriu o Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas, em Lisboa), há um ritual implacável que se encena aqui, só que esse ritual já não tem a graça inócua do restaurante disfuncional entregue a um batalhão de empregados com manias, ou dos bastidores mais ou menos anárquicos de um teatro em noite de estreia: tem o peso terminal da doença mental que recentemente se tornou um fantasma bem concreto para a Familie Flöz (e mesmo à mesa do jantar, esse há-de ser um assunto de conversa com Anna Kistel, Benjamin Reber e Björn Leese, três dos intérpretes e co-criadores desta produção).

Dr. Nest, conta Anna Kistel ao Ípsilon depois de um esparguete com alho, vegetais e extra parmesão incessantemente interrompido pelas dezenas de amigos, conhecidos e admiradores que há muito não viam a companhia em Duisburgo, foi o primeiro espectáculo da vida da Familie Flöz após a morte – atribuída a uma enigmática forma de demência – de uma figura fundamental para a história deste colectivo multicultural, o performer e encenador Paco González. “Não é que tenhamos dito: ‘vamos fazer uma peça sobre o Paco’. Mas de alguma maneira isso estava em nós, e esta era a altura para falarmos disso. E também quisemos tocar, porque são experiências muito próximas de alguns de nós, no fenómeno do esgotamento, do burnout, que parece muito deste tempo em que todos temos de fazer tudo estupidamente depressa: o que é acontece quando o cérebro colapsa, quando deixamos de conseguir funcionar…”, explicita a intérprete, que neste espectáculo começa por aparecer como enfermeira-chefe e depois se desdobra, como os restantes elementos do elenco, em inúmeras outras personagens.

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A história de como tudo começou, porém, é bem diferente, e leva-nos ao lugar onde Björn Leese cresceu, também não muito longe de Duisburgo, uma pequena aldeia-piloto onde, ao abrigo de um programa de acolhimento, cada família, incluindo a dele, tinha a seu cargo um determinado número de pessoas com deficiência: “Para mim sempre foi muito normal lidar com eles – e gozar com eles, tal como gozo com o Benjamin ou com a Anna, tal como eles gozavam uns com os outros ou comigo. Naquele lugar, esse tipo de humor hoje politicamente incorrecto não era proibido, não era tabu.”

Ler o corpo

A vontade de trabalhar a partir desse lugar de fronteira entre a normalidade e a não-normalidade foi parar a uma gaveta, como muitas outras ideias que aparecem e desaparecem à velocidade da luz no laboratório da companhia, em Berlim. A dada altura, já não sabem dizer-nos quanto tempo depois, alguém reabriu a gaveta e então começaram a aparecer livros (Oliver Sacks, Oliver Sacks, Oliver Sacks, repetem), filmes (o incontornável Voando sobre um Ninho de Cucos de Milos Forman, especificamente, permaneceu à cabeceira até ao fim e infiltrou-se, como é muito óbvio, no título do espectáculo), casos clínicos paradigmáticos e sobretudo “muito material pessoal”. Quando um elenco se junta para trabalhar, diz Anna, começa por enfrentar o tema com o que lhe vem das entranhas: “Não é pelo pensamento que vamos lá, é pelo instinto. Às tantas conseguimos acender uma chama juntos – e a partir daí tratamos de atirar achas para a fogueira.”

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Depois, cada processo é um processo, com “o seu tempo de cozedura”. A própria natureza das improvisações, etapa crucial da construção do espectáculo, muda consoante a forma como aparecem as máscaras, precisa Benjamin: “Há casos em que começamos imediatamente a improvisar com elas – temos imensas no atelier, criadas em workshops abertos ao público ou para outras peças em que não chegaram a entrar, e que ficam para ali, à espera de uma segunda oportunidade. Neste caso, pelo contrário, começámos por criar a personalidade de cada personagem; a seguir, o Hajo [Schüler, um dos dois fundadores da companhia] construiu as máscaras à medida.”

Às das personagens principais, diz Anna, acabam por dar nomes, biografias, afinidades, filiações, personalidades: “Uma mulher em Berlim disse-me certo dia, acerca de uma personagem, que gostava que ela fosse sua amiga. É incrível como se tornam reais.” E é mais incrível ainda quando se sabe como surgem, praticamente do nada: “O Hajo é impressionante, vê as mil caras que temos por dentro. Basta que lhe dês uma pista – mesmo que seja do mais escuro, do mais negro, do mais insondável que possa haver – para ele te dar uma cara. Às vezes, quando ele chega com a máscara, pensas: ‘oh, merda’, não quero ser esta pesssoa. E depois funciona.”

São sempre máscaras carismáticas, inesquecíveis, as da Familie Flöz, máscaras que impõem ao corpo humano, proporcional, dos actores rostos gigantes de olhar perdido ou obstinado, com as suas orelhas protuberantes, as suas amolgadelas poéticas. É uma ilusão pensar que alguém pode desaparecer atrás delas: não estão lá para esconder nada, estão lá para escancarar tudo. É esse o espanto que vêem repetir-se com cada novo aluno da companhia: “Chegam ao atelier a pensar que atrás da máscara vão estar protegidos. Mas o que vês quando põem uma máscara pela primeira vez é medo, é uma pessoa nua. Sem voz e sem cara, só nos resta o corpo. E vê-se imediatamente quando estamos perdidos.”

Talvez Hajo Schüler não tivesse bem noção quando criou a companhia, mas a escolha de pôr a máscara à frente da cara e de não usar a palavra, como dizia a um jornal italiano em Abril, quando Dr. Nest se estreou, “tem muitas consequências, porque põe o corpo no centro das atenções”. Entretanto, com o tempo, percebeu que não havia maneira mais directa de comunicar: “Ainda que não o saiba, o público é um especialista na leitura da linguagem corporal.”

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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