Um cenário de pesadelo

O que Trump quer é um verdadeiro pesadelo para a União Europeia, já de si a braços com problemas políticos enormes.

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1. Substância ou espectáculo? Interroga-se Carl Bildt, que já foi primeiro-ministro e chefe da diplomacia da Suécia, num texto publicado pelo European Council on Foreign Relations. O título da sua análise leva-nos directamente ao último acto de uma visita do Presidente americano à Europa que conseguiu ultrapassar os piores cenários imaginados nas chancelarias europeias: “Por que razão a Europa está muito nervosa com a cimeira Trump-Putin”. Por muitas razões, sendo a primeira justamente o que aconteceu há três dias na cimeira da NATO. Trump apropriou-se do espectáculo durante os dois dias que passou em Bruxelas. Os aliados europeus tentaram controlar os danos, insistindo em que, na substância, não houve grandes alterações. Em matéria de orçamento da defesa, tudo ficou como estava previsto: chegar aos 2% até 2024, uma decisão tomada há quatro anos ainda no tempo de Obama. O comunicado final subscreve as várias decisões em matéria da estrutura militar, reforçando a frente Leste e preparando a Aliança para as novas ameaças. Não há referências à nova meta dos 4% que Trump atirou para cima da mesa inesperadamente. É verdade. Os líderes europeus abstiveram-se de críticas, cumprindo a sua nova “estratégia” para lidar com ele: não alimentar conflitos e deixar que a maré passe. Agarrando-se ao conteúdo e ignorando o espectáculo.

Trump entrou a matar, atirando abertamente contra a Alemanha, lançando o pânico geral com uma ou outra insinuação de que o seu país poderia abandonar a NATO, para acabar num verdadeiro acto de malabarismo político, anunciando que tudo o que exigiu dos aliados foi aceite e que a NATO estava mais forte do que nunca. O que lhe importa é que foi ele quem dirigiu o show para obter os resultados pretendidos, deixando atrás de si um rasto de desconfiança. Para Moscovo, o que interessa são os sinais. Pela primeira vez, um Presidente americano pôs em causa a utilidade da NATO. É tudo o que querem saber.

2. Aliás, bastou a Trump atravessar a Mancha e aterrar em Londres para confirmar o significado do seu show de Bruxelas. A primeira coisa que disse, numa entrevista ao Sun, foi que o novo plano de Theresa May para o "Brexit" não interpretava o sentido do voto dos britânicos; a segunda, que Boris Johnson daria um excelente primeiro-ministro; a terceira, que o “soft 'Brexit'” inviabilizava um acordo de comércio livre entre os dois países. Só faltou pedir publicamente a demissão da primeira-ministra. A mensagem estava dada. O programa da visita continuou. May ofereceu-lhe um banquete no palácio onde nasceu Winston Churchill, tentando talvez avivar-lhe a memória sobre a história da “special relationship”, forjada na II Guerra e nunca posta em causa por nenhum Presidente americano ou chefe do governo britânico. Reuniu-se com ele em Chequers, sempre para evitar as manifestações de Londres, para lhe explicar o significado da sua nova estratégia. À saída, Trump desdisse o que tinha dito ao Sun. “São fake news”. Renovou o seu apoio a May, fosse qual fosse o seu plano para o "Brexit".

Não vale a pena ter ilusões. Trump sabe exactamente o que faz. Primeiro fala ao Sun e diz o que pensa. Depois, elogia o alvo das suas diatribes. Fez exactamente a mesma coisa com Angela Merkel. Disparou uma rajada de metralhadora contra a Alemanha, coisa que faz com grande frequência, para dizer, depois de uma conversa a dois, que estava tudo óptimo entre ambos. A mensagem, tal como em Londres, já estava dada. Da forma mais brutal. Este Presidente americano não tem qualquer apreço pela NATO como por outras organizações multilaterais, que vê como uma limitação indesejável ao poder da América. Não entende, sequer, as razões pelas quais a integração europeia nasceu e se desenvolveu. O seu pensamento, como escrevia alguém, é a-histórico e as relações internacionais são meras transacções em que cada um joga com a força que tem. “Might is right.” Aponta à Alemanha e aponta à Europa porque quase todos os países, incluindo o Reino Unido, têm excedentes comerciais com os EUA. Tudo lhe serve para corrigir essa profunda “injustiça”. Declarou à China uma “guerra comercial” que começa a produzir os seus efeitos nefastos na economia mundial. Promete o mesmo para a Europa, se os europeus não lhe derem a devida atenção. Já aplicou tarifas ao aço e ao alumínio que os EUA importam, incluindo do Canadá, da União Europeia e do Japão, os seus principais aliados no Atlântico e no Pacífico, coisa que não o perturba, alegando razões de segurança nacional, as únicas que a OMC aceita para que um país aja unilateralmente.

3. Como qualquer demagogo, o Presidente americano serve-se de factos reais para dar crédito à sua mensagem. Quando acusa a Alemanha de estar “prisioneira” da Rússia, justifica a sua afirmação com o Nord Stream 2, o segundo gasoduto que vai ser construído para levar o gás natural russo directamente para a Alemanha, contornando os países bálticos e a Polónia, e sabe que incomoda esses países, que se sentem ainda mais vulneráveis às provocações de Putin, e irrita alguns outros parceiros europeus, preocupados com a dependência energética europeia. Tem também um interesse comercial. Quer exportar gás de xisto liquidificado para a Europa, dispensando a concorrência russa. A ideia é boa, os métodos que utiliza não são os melhores. Quando acusa a Alemanha de ser a principal responsável pelo gigantesco défice comercial dos EUA em relação à União Europeia, sabe que está a tocar num ponto sensível para outros países europeus, que criticam o enorme excedente comercial alemão, acusando-o de desequilibrar as contas externas de outras economias europeias. Quando singulariza a política de imigração da chanceler, sabe que está a tocar noutro ponto particularmente delicado, em que as suas ideias começam a ter eco. Pode não dominar os pormenores e ignorar muitos dos factores que sustentaram a relação transatlântica, mas sabe exactamente o que quer. E o que quer é um verdadeiro pesadelo para a União Europeia, já de si a braços com problemas políticos enormes.

4. Quando Robert Gates, que foi secretário da Defesa de Obama, veio a Bruxelas despedir-se dos seus aliados europeus, disse algumas palavras muito duras, que acabaram por se revelar proféticas. Insistindo em que os países da NATO tinham de aumentar os seus recursos militares para garantir que a Aliança continuava a ser vista como fundamental dos dois lados do Atlântico, Gates acrescentou que, um dia, poderia aparecer alguém disposto a dizer aos americanos que era tempo de deixar de utilizar os seus impostos para garantir a segurança dos países europeus, tão ou mais ricos do que eles. Nesse dia, disse ele, poderia ser demasiado tarde. Já lá estamos. A Europa levou demasiado tempo a acordar para este risco. Agora, não sabe exactamente o que fazer. Não teria servido de nada uma reacção emotiva ao show de Donald Trump, no qual os aliados perceberam tarde de mais que eram meros figurantes.

Nem tudo está perdido. A reacção muito negativa de vários congressistas, muitos deles republicanos, ao que se passou na cimeira da NATO, e o que pode acontecer na cimeira com Putin, mostra que a questão está longe de ser pacífica. Ao mesmo tempo, as “guerras comerciais” começam a enervar demasiado alguns sectores da economia americana. Terão força para levar Trump a corrigir alguns tiros? Há muitas dúvidas. Mas também há sinais absolutamente contraditórios na opinião pública dos EUA. Uma sondagem muito recente considerava Obama o melhor Presidente entre os mais recentes. A única coisa que é certa é que ninguém estava preparado para este Presidente. E o pior ainda pode estar para vir, quando o Air Force One aterrar amanhã em Helsínquia, para a sua primeira cimeira oficial com Vladimir Putin. Voltando a Carl Bildt, que preço estará Trump disposto a pagar a Putin para que o show continue? O exemplo de Kim Jong-un não é o mais edificante.

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