Um retrato do país fora do Parlamento

No dia seguinte ao debate parlamentar desta sexta-feira, o PÚBLICO pediu a oito portugueses para falarem sobre o Estado da Nação para lá das portas de São Bento.

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RITA CHANTRE

Ana Oliveira – Emigrante qualificada

Aos 24 anos, Ana Oliveira conta já com três como assistente de bordo na companhia aérea Emirates. Licenciada em Audiovisual e Multimédia, tomou a decisão de ir trabalhar para fora “muito antes de acabar o curso”. Decisivo foi o “contrato estável e com boas condições” que a fez não procurar outras alternativas em Portugal.

Partiu para os Emirados Árabes Unidos por opção, viaja pelo mundo e não se arrepende da escolha que tomou. Diz que a decisão de sair foi sua e vai ser sua “a escolha de voltar de novo”. Representa uma nova geração da emigração portuguesa –? mais qualificada –, numa “fuga de cérebros” que teve o seu pico nos anos da crise.

Diz que a melhor coisa que lhe aconteceu “foi sair fresca de uma licenciatura e ir trabalhar para um país diferente”, mas hoje “é muito difícil não ter o desejo de voltar a casa”. Para Ana Oliveira, “o dinheiro não é tudo” e “estar em casa vale por muito”, por isso é que pensa “voltar um dia” para o país que a viu partir.

Dados do Observatório da Emigração mostram que em 2015, quando Ana Oliveira saiu do país, 22% dos portugueses viviam no estrangeiro.

José Filipe Murteira – Habitante de Beja

Mais de 26 mil pessoas assinaram este ano a petição “Beja Merece+” e entre eles está José Filipe Murteira, professor do Ensino Secundário. Os signatários pedem que o Governo não se esqueça do Baixo Alentejo, esperando que “não falte vontade” para investir na região.

A situação repete-se um pouco por todo o interior, “a qualidade de vida existe em várias áreas, mas não há acessibilidades”. É uma daquelas ‘pescadinhas de rabo na boca’: sem acessos não há pessoas, sem pessoas “o Governo também não investe em acessibilidades”. José Murteira, como tantos na região, sente-se “abandonado” pelos "políticos de Lisboa".

Em Beja já não há comboio directo para a capital desde o início da década. Para chegar àquela cidade do Baixo Alentejo pela ferrovia é preciso arriscar a viagem em “automotoras do século passado”, ou, quando estas avariam, “ir no autocarro de substituição quando há”. Por estrada, “a situação também não é melhor”.

Em 2011, moravam no distrito de Beja 152 mil pessoas, menos de 7% da população do distrito de Lisboa.

Inês Félix – Desempregada

Foi de estágio em estágio, mas nunca chegou a ter um contrato. Inês Félix estudou Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, e, “apesar dos pareceres positivos”, as empresas “nunca tiveram oportunidade” para a contratar.

A necessidade existia nos sítios onde estagiou. O período devia ser de formação, mas na prática sabia “que estava a substituir a função de alguém”. Inês revela ter ficado “retida” em ciclos de estágios de três meses que a deixavam a sentir que “tinha mais para dar”. Chegou a enviar currículos a 30 empresas, só cinco lhe responderam.

Ainda com o percurso profissional incerto, decidiu continuar a apostar na sua formação e inscreveu-se num mestrado em Audiovisual e Multimédia. Agora diz que se ninguém lhe der oportunidade de mostrar o que consegue fazer, vai pegar nas suas ideias “e levá-las para a frente”. Criar o seu próprio trabalho “pode passar pelos planos”.

Dados da OCDE mostram que em Portugal o desemprego jovem (15 aos 24 anos) neste mês de Maio se situou nos 20,8%.

Pedro Adrião – Co-fundador de startup

Co-fundador da startup MeshPorto, Pedro Adrião quer fazer com que os clientes de um restaurante não tenham de esperar pelos funcionários para fazerem pedidos.

A startup de Pedro quer crescer, apesar de “não ser fácil ter uma startup em Portugal”. O país “projectou-se e ganhou com eventos como a Web Summit”, mas os negócios continuam a ser de risco, até porque “quando se tem uma ideia, a ideia avança com capitais próprios até chegar à mira de um investidor”.

A aplicação conhecida por Psstmenu já tem clientes em Portugal e na Bélgica. Agora “a perspectiva é crescer”, mas a realidade mostra que “em termos de internacionalização continua a ser complicado, apesar de já ter sido mais”. No mundo das startups acaba por ser assim: “Uns têm sorte, outros a capacidade e agilidade, outros acabam só por ficar por cá.”

A Rede Nacional de Incubadoras (RNI) diz que as startups contribuíram para a criação directa de 2547 novos empregos entre 2016 e o final de 2017.

Mamadou Ba – Activista contra o racismo

Dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba admite que “o país político já começou a ser confrontado com a sua inacção” face à discriminação racial, e que é por isso preciso “passar para acções políticas mais concretas”. O activista defende que “o Estado tem de começar a legislar no sentido de criminalizar o racismo”.

Mamadou diz que “há bastante tempo que vivemos numa espécie de quimera, em que a realidade contradiz a crença de que Portugal não é um país racista”, dando o exemplo de vários casos como os da discoteca Urban Beach, a esquadra de Alfragide ou o caso de Nicol  Quinayas no Porto. E nem sempre “há justiça para estes casos”.

O activista não tem dúvidas em afirmar que “o Estado falhou completamente” e “está ainda muito aquém das exigências no combate ao racismo”, mas diz estar cá “para que as coisas mudem”.

Dados da Direcção-Geral de Reinserção Social de 2011 mostram que a taxa de encarceramento de pessoas com nacionalidade dos PALOP é 15 vezes superior à dos portugueses.

Fernando Martins – Reformado

Fernando Martins faz parte da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!), onde é vice-presidente. Afirma que a situação dos reformados e pensionistas “é diferente com este Governo” e que, “apesar de não ser a situação ideal”, nos últimos tempos “tem existido uma reposição de rendimentos”.

Este Governo eliminou a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) e actualizou o valor das pensões, mas para Fernando “estamos ainda muito longe de atingir as condições mínimas para erradicar a pobreza nos idosos”.

Dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do Instituto Nacional de Estatística mostram que, em 2017, dos quase 2,4 milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, 451 mil (18,8%) tinham 65 ou mais anos. 

Segundo o Pordata, Portugal tinha no ano passado 3,6 milhões de reformados e pensionistas.

Beatriz Santana - Feminista

Portugal ratificou o tratado do Conselho da Europa sobre a prevenção e o combate à violência contra mulheres, conhecido como Convenção de Istambul, em 2013, e os sucessivos governos comprometeram-se a trabalhar para acabarem com a desigualdade de género, mas Beatriz Santana diz que o próprio “Estado português não se assume como feminista”.

Beatriz pertence à Assembleia Feminista de Coimbra, um grupo de pessoas “que compartilham uma luta feminista de base”. A jovem diz que o Estado falha de várias formas, desde o facto de a própria polícia não estar preparada para lidar com casos de assédio ou de violência doméstica” até à “falta de apoio aos projectos de defesa da igualdade de género que existem e que acabam por ser descontinuados”.

Um dos exemplos que considera mais grave “é a forma como os casos de violência doméstica são tratados nos tribunais portugueses”, em que “uma mulher só é vista como vítima se apresentar uma posição passiva”, porque “se ela for independente dizem-lhe que se devia ter sabido defender”.

Apesar de “não pode negar” o facto de o feminismo “estar na moda”, para Beatriz ainda há um longo caminho a percorrer numa luta que “não é apenas pela igualdade de género, mas pela prática de uma cultura de paz, horizontal, anti-machista, anti-xenófoba, anti-lgbtqfóbica e anti-capitalista.”

Dados do Eurostat mostram que os homens em Portugal ganham mais 17,5% do que as mulheres.

Fernando Teixeira – Advogado Estagiário

Aos 23 anos, Fernando Teixeira tem dúvidas sobre o seu futuro profissional, até porque afirma que, “qualificado ou não, um jovem em Portugal tem hoje sérias dificuldades em perceber o que vai ser a sua vida daqui a uns anos”, muito por causa “do grau de instabilidade no mercado de trabalho português”.

Fernando estudou Direito na Universidade de Coimbra e está nesta altura no período de estágio. Ano e meio de trabalho “que não é pago” e em que “não existe outro tipo de protecção caso fique doente, por exemplo”.

Na advocacia, como noutras profissões, o acesso à carreira é feito com um estágio e uma prova de acesso à Ordem. “Há quem receba, mas a regra é a não-remuneração dos estágios”, algo que não considera justo. O recurso a estagiários não remunerados é recorrente até porque “nem a própria Ordem dos Advogados faz força para que isso não aconteça”.

Portugal tinha no primeiro trimestre deste ano uma taxa de 8,8% de "nem-nem" (jovens que não estudam nem trabalham), um valor mais baixo do que a média da União Europeia (10,6%).

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