Não dizer não

A língua portuguesa está cheia de negativas e duplas negativas. O que faz falta é a afirmação.

Está na moda o “não desgosto”. Usa-se na mesma veia do “vai-se andando” e do “podia ser pior”.

Às vezes junta-se à confissão dos guilty pleasures, mas raramente com a coragem necessária, como seria afirmar “não desgosto da voz da Camila Cabello”.

Mais enfurecedor é o “não amo” ou “não adoro” com o sentido de “não gosto”. Deveria reservar-se para as instâncias em que se gosta assim-assim, ou, porque não, para quando se gosta sem amar.

A verdade é que a língua portuguesa está cheia de negativas e duplas negativas. O que faz falta é a afirmação. Perguntam-lhe porque é que só comeu uma garfada da salada de atum. Em vez de dizer que não gostou diga: “Desagradou-me.” Ou diga directamente: “Esta salada desagrada-me. Traga-me outra coisa.”

Então e esta calça tão bonita?
Desgosta-me. O quê? Essas calças causam-me desgosto. A sua complacência exaspera-me. O seu cigarro importuna-me. O que é que achou do meu livro? Aborreceu-me. Este frango repugna-me. Os gritos dos seus filhos atormentam-me. Não me enfureça, se não se importa.
Está-me a agoniar ouvi-lo falar, queira-me desculpar. Este tipo de letra arrelia-me.
O cheiro da sua cataplana incomoda-me.

O truque é não poder usar a palavra não. Dilacera-nos falar sem ela, mas o resultado é poder falar com maior clareza. O não é um diluente, tira força. O que é que achou da minha açorda de atum? Compraz-me dizer-lhe que a sua açorda de atum me contristou. Mas a ideia era boa, não acha? Compunge-me responder-lhe que, pelo contrário, era má. Desanimou-me.

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