Comerciantes da rua de São Lázaro têm de sair para que surjam casas de renda acessível

Braço-de-ferro entre câmara e comerciantes da rua de São Lázaro está para durar. Lojistas admitem que a autarquia não está a negociar, mas sim a impor o abandono das lojas que ocupam há décadas. Câmara reitera que está e continuará a negociar com todos os arrendatários.

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Duas da tarde, café tomado n’A Caprichosa, casa que nos últimos dois anos tem ouvido os lamentos e os receios dos comerciantes da rua de São Lázaro que temem ficar sem lojas. Vão ter de sair dos prédios que ocupam porque a senhoria, a Câmara Municipal de Lisboa, quer afectar essas fracções ao Programa Renda Acessível (PRA). 

João Barreiro, 64 anos, ali está atrás do balcão há 40 e tal anos a servir bicas e o que o freguês mais quiser. “Já viu o que são 45 anos numa rua?”. O cabelo já não é mais negro e as conversas à mesa do café só lamentam o que está a acontecer à “rua com mais comerciantes portugueses em Lisboa”. A percepção é deles. Dos donos d’A Caprichosa, dos Armazéns do Socorro, a Deoferfil, Lda, ou Os Rochas que estão a ser sondados para deixarem as suas lojas. 

Há três meses, alguns comerciantes receberam uma carta da autarquia a propor-lhes a saída, apresentando um valor de indemnização. "Os valores que me ofereceram nem dão para indemnizar um empregado. E somos cinco na loja", diz José Fernandes, o proprietário da Deoferfil, um dos armazéns de têxteis-lar da rua, que é também o presidente da Associação do Comércio Tradicional da Rua de São Lázaro, constituída no início de 2017, para fazer frente a este processo.

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José Fernandes é dono da Deoferfil que ocupa o número 60 da rua de São Lázaro Nuno Ferreira Santos

Apresentado pela autarquia em Abril de 2016, o PRA prevê a construção de habitação com custos acessíveis em várias zonas da cidade, numa parceria do município e o sector privado. A autarquia disponibilizará terrenos e edifícios que são sua propriedade e os privados encarregar-se-ão de construir ou reabilitar. No total, o programa prevê o arrendamento de seis mil habitações em 15 zonas da capital. 

Apesar de já ter tido reuniões na câmara, José Fernandes admite que vai sabendo as novidades do projecto “pelos jornais”. “A câmara nunca nos elucidou em nada”, completa João. Pediram-lhes papéis sobre a vida deles ainda em 2016, quando foi anunciado o programa, mas a partir daí o processo não tem sido fácil. 

Na terça-feira, durante a sessão da assembleia municipal, o presidente da câmara, Fernando Medina, admitiu que o município tinha já chegado a um acordo com um "número importante" de comerciantes da rua de São Lázaro. "Foi possível encontrar uma solução para um número já importante de arrendatários e ocupantes precários, também com instituições que utilizavam aquelas instalações, e prosseguem as reuniões relativamente aos restantes", apontou o autarca, citado pela Lusa, mas afirmando que as reuniões com os lojistas estão para continuar.

Mas rapidamente recebeu uma resposta do presidente da Associação do Comércio Tradicional da Rua de São Lázaro que disse que a câmara não chegou a acordo com “ninguém”. José Fernandes diz que a saída dos dois comerciantes que dali foram embora foram “impostas”, porque se tratavam de contratos de arrendamento precários, logo o senhorio poderia mandá-los sair. “Saíram sem um cêntimo”, nota. 

Ao PÚBLICO, a autarquia diz que, até ao momento, foi possível chegar acordo com dez titulares de contratos não habitacionais, dos quais apenas um ainda se mantém no local, com a devida autorização do município. E que “persistem negociações com 14 arrendatários”.

“Daqui depende a minha família"

“Não vão ser construídas lojas? Por que é que não nos dão as lojas?”, questiona José Fernandes, admitindo que as casas que ali estão têm futuro. “Quem quiser sair, que saia. Mas quem quer ficar, devia ter essa hipótese”, diz João, admitindo que estão dispostos a discutir actualizações às baixas rendas que pagam. 

Se não houver hipótese de ficarem nas lojas, o que pedem à autarquia é que lhes seja paga uma indemnização razoável. “Se o valor da indemnização for justo, há pessoas que querem sair”, argumenta Carlos Jorge, de 64 anos, sócio da casa de têxteis-lar Armazéns do Socorro. 

“Assim, até parece que pertencemos a outra cidade”, há-de rematar João, lamentando que não se valorize o escasso comércio tradicional que ainda vende artigo português.

Além de fecharem as lojas e ficarem sem negócio, muitos não saberão o que fazer ao stock que têm nas lojas. "Tenho colegas que têm aqui 500 mil euros de mercadoria", diz José Fernandes. É o que diz também Isidro Santos, de 73 anos, dos Têxteis Viúva. Está naquela rua há 60. Há 28 anos que abriu a própria loja, com 350 metros quadrados. Remodelou o interior por completo, sem a câmara ali ter posto “um tostão”, critica, assim como a maioria dos comerciantes com que o PÚBLICO falou que garantem não ter deixado as casas degradarem-se. 

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Há 60 anos que Isidro Santos trabalha naquela rua Nuno Ferreira Santos

“Nunca abandonámos isto nem na época da droga e da prostituição. Quando os outros saíam, nós nunca abandonamos Lisboa”, atira o presidente da associação. 

Ao PÚBLICO, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, diz que a junta não tem capacidade para intervir. “A junta não faz e não resolve porque não tem instrumentos legais para o poder fazer”, diz o autarca. 

Quando esta questão se começou a levantar, Miguel Coelho diz que recebeu os comerciantes e os aconselhou a constituírem uma associação e a arranjarem um bom advogado que os defendesse - algo que José Fernandes diz que já tinham sido proposta por Helena Roseta numa sessão da assembleia municipal em que os lojistas intervieram.

“Eu vejo com pena a desertificação que está a acontecer neste território, não só de habitantes, mas de determinado tipo de comércio”, nota o autarca de Santa Maria Maior. Em quatro anos, a freguesia perdeu cerca de 2500 pessoas. E desde as últimas autárquicas cerca de 400 pessoas. “O problema da falta de habitação e da renda acessível na cidade de Lisboa é um drama muito grande e este problema não pode ser só resolvido por uma entidade. É necessário que os privados invistam, mas é necessário que o Estado também invista fortemente e coloque no mercado habitações com renda acessível como forma de regular e travar esta especulação com as rendas”, sustentou. 

Os comerciantes querem evitar a expropriações. É por isso que se pedem que a autarquia dialogue mais. Em resposta ao PÚBLICO, a autarquia diz que "têm sido dadas como alternativas a atribuição de novos espaços noutro local com idênticas condições ou a atribuição de indemnizações justas para a revogação dos contratos de arrendamento com valores muito superiores aos que resultam da aplicação do critério legal".

João Barreiro lembra que a autarquia lhes propôs mudarem-se para lojas na Alta de Lisboa. Mas a solução não é viável: “Demora-se anos para conseguir uma clientela”. 

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João Barreiro pegou no negócio d'A Caprichosa há mais de 40 anos Nuno Ferreira Santos

Na próxima semana, a Associação do Comércio Tradicional da Rua de São Lázaro vai entregar uma petição na assembleia municipal a dar conta do “terramoto” pelo qual dizem estar a passar. 

Entre os funcionários mais novos, não se sabe como agarrar o futuro. Cristina Cunha, de 47 anos, diz que só sabe atender a clientela e ajudá-la a escolher roupa interior, panos de cozinha, lençóis, colchas. “Eu não tirei nenhum curso. Só sei fazer isto”. Já Nuno Rocha, de 35 anos, segue o negócio – Os Rochas - que o pai ali estabeleceu em 1983. “Daqui depende a minha família. Pai, mãe, irmã, mulher, filho. É o nosso ganha-pão”. 

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