E Ingmar Bergman venceu o jogo de xadrez...

O realizador de O Sétimo Selo nasceu faz este sábado cem anos e morreu em 2007. O que é que ficou da sua obra? Eis algumas pistas para entender a herança do cineasta e encenador sueco, cujo centenário está a ser celebrado um pouco por todo o mundo e também por cá.

Ingmar Bergman, Käbi Laretei, Procurando por Ingmar Bergman, Fanny e Alexander, diretor de cinema
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Ingmar Bergman nos anos 60, com o filho Daniel e a mãe deste, Kibi Läretai DR
Ingmar Bergman, Winter Light, diretor de cinema
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Ingmar Bergman nos anos 60 DR
Ingmar Bergman, Sven Nykvist, Fanny e Alexander, Suécia, luz de inverno, diretor de fotografia
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Ingmar Bergman com o seu director de fotografia, Sven Nycvist, nos anos 70 DR
Liv Ullmann, Ingmar Bergman, Suécia, Liv
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Ingrid Bergman com Liv Ullmann,Ingrid Bergman com Liv Ullmann DR
Verão com Monika, Ingmar Bergman, Suécia
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Mónica e o Desejo DR
Ingmar Bergman, Woody Allen, Ulla Jacobsson, sorrisos de uma noite de verão, filme
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Sorrisos de Uma Noite de Verão DR
Suécia
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O Sétimo Selo DR
Suécia
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Morangos Silvestres DR
Bibi Andersson, personalidade, Ingmar Bergman, Mulholland Drive, Persona
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A Máscara DR
Fanny e Alexander, Ingmar Bergman, filme
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Fanny e Alexandre DR
Ingmar Bergman, Erland Josephson, Saraband, cenas de um casamento
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Saraband DR
Companhia Olga Roriz
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A Meio da Noite, coreografia de Olga Roriz Paulo Pimenta

Não é que sejamos todos bergmanianos, mas “não herdámos todos nós a herança de Bergman”? A pergunta-resposta é de Rita Azevedo Gomes, quando a questionámos sobre quem são os herdeiros, no cinema mundial (e português?), da obra do realizador e encenador sueco, cujo centenário do nascimento este sábado se assinala.

Esta é uma questão que parece convocar uma resposta unânime, independentemente do apreço maior ou menor em que se tenha o conjunto da obra de Ingmar Bergman (1918-2007). Até porque uma figura como Jorge Silva Melo, que não o coloca no top ten das suas afeições, confessa que Mónica e o Desejo estará sempre na sua mesa-de-cabeceira cinéfila.

A verdade é que os filmes de Bergman continuam a fazer o seu caminho e a conquistar públicos de sucessivas gerações. É impressionante, de resto, consultar – e pode-se fazê-lo no site da Fundação Ingmar Bergman, que está a coordenar as celebrações mundiais do autor de O Sétimo Selo – o programa do centenário, que apresenta uma miríade de iniciativas espalhadas por todo o mundo: de Estocolmo a Bogotá, de Vancôver a Hong Kong, de Odessa a São Paulo, de Paris a Berkeley, de Jerusalém a Lisboa… Mas já lá vamos.

O cineasta dos rostos

O que é que fica, afinal, da obra de Bergman, principalmente do seu cinema? Foi a primeira pergunta que fizemos a algumas figuras com relações de maior ou menor familiaridade com o autor de Em Busca da Verdade.

Jorge Silva Melo começou pelo mais óbvio: “Os rostos!” “Poucos, como ele, deram uma tal atenção aos rostos. E são inesquecíveis, tal como ele os filmou”, responde o realizador e encenador dos Artistas Unidos.

Rita Azevedo Gomes, também cineasta e encenadora, refere “a reflexão sobre o ser humano, a procura incessante do entendimento” e o modo muito particular como ele filmou “o desenrolar da história e da vida que levamos na terra, rodeados de fantasmas, medos e culpas”.

António Roma Torres, crítico de cinema, dramaturgo e psiquiatra, depois de enumerar as várias fases temáticas por que passou a sua filmografia – desde o Bergman mais escandinavo dos anos 50 a abordar os temas da mulher (Um Verão de Amor, Mónica e o Desejo, Uma Lição de Amor, Sorrisos de Uma Noite de Verão), do envelhecimento e da morte (Morangos Silvestres, O Sétimo Selo), até à afirmação internacional e à chegada ao grande público a partir da década de 70, com filmes de teor “mais psicológico” (Lágrimas e Suspiros, Cenas da Vida Conjugal, O Ovo da Serpente, Sonata de Outono, Saraband) –, nota que se trata de “uma obra multifacetada, bipolar, sofrida, mas com momentos de grande beleza e força interior, que não pode deixar uma só influência”.

Já António Costa, programador, coloca-o sem reservas na lista dos clássicos, esses “que vão sempre à nossa frente, e Bergman estava sempre à frente do seu tempo (como ainda o está do nosso)”.

Tanto o programador da Medeia Filmes como Silva Melo realçam, de resto, como em Bergman o teatro e o cinema se contaminam – mesmo que não se trate aqui de “um cinema teatral”, como João Bénard da Costa explicou no longo ensaio que escreveu para o catálogo que acompanhou a retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa dedicou ao realizador sueco em 1989, quando este tinha já anunciado o abandono do cinema, após o sucesso de Fanny e Alexandre (1983), promessa que, como se sabe, não viria a cumprir...

“O que está por estudar é a ligação permanente entre o teatro que fez e os seus filmes”, lembra o encenador dos Artistas Unidos, que nesse catálogo assinou também um texto incontornável sobre este tema, intitulado “Até ao campo-contracampo”. E Silva Melo volta agora a notar que A Máscara é A Mais Forte, de Strindberg; O Silêncio é o seu Tennessee Williams; Lágrimas e Suspiros é a adaptação de As Três Irmãs, de Tchekov; e Morangos Silvestres o seu O Sonho, de Strindberg... “Era sempre as peças que fazia no Outono e se reflectiam no argumento que escrevia para filmar na Primavera”, acrescenta.

No tempo da lanterna mágica

Esta prevalência do teatro relativamente ao cinema poderá ser uma herança da infância de Bergman, talvez explicada pelo teatro de marionetas com que ele e os dois irmãos, Dag e Margareta, brincavam na casa da sua adorada avó materna, Anna Akerblom, na cidade natal de Upsala. Mesmo se foi também em criança que ele trocou com o irmão mais velho a sua colecção de soldadinhos de chumbo pela “lanterna mágica” – que, recorde-se, viria a ser o título da autobiografia que publicou em 1987 –, com que depois projectava repetidamente os três metros de película que mostravam a Frau Holle, uma deusa do amor a acordar num prado verde…

Com apenas dez anos, Ingmar faz a primeira visita à Ópera Real de Estocolmo, e logo de seguida franqueia a porta do Teatro Real Dramático – o vetusto “Dramaten”, que iria ser convidado a dirigir no início da década de 60 e onde se manteria durante quatro décadas.

Foi certamente aqui que “um rapaz que se chamava Ingmar se converteu depois simplesmente em Bergman”, como depois comentou o seu amigo e actor cúmplice de dezena e meia de filmes Erland Josephson.

No cinema, assina a primeira realização, Crise, em 1945, um ano depois da estreia de Tormenta, cujo argumento escreveu para Alf Sjöberg. Nessa altura, já tinha encenado três dezenas e meia de peças de teatro em diferentes palcos do seu país. Seguir-se-ão, para o grande e (na parte final) o pequeno ecrã, mais de quatro dezenas de longas-metragens e perto de 70 títulos. “O cinema faz parte de mim mesmo. É um instinto, como a fome e a sede. Algumas pessoas expressam-se escrevendo livros, pintando quadros, escalando montanhas, batendo nos filhos ou dançando o samba. Eu expresso-me fazendo filmes”, escreveu Bergman.

Nessa longa lista de filmes, Rita Azevedo Gomes selecciona Um Verão de Amor, Da Vida das Marionetas, Ritual, A Fonte da Virgem e, “a culminar a sua obra, no verdadeiro sentido da palavra”, Saraband.

Roma Torres prefere Lágrimas e Suspiros, O Sétimo Selo, Sonata de Outono, Morangos Silvestres e Noite de Circo. Já António Costa faz coro com a opinião de Jean-Luc Godard, que um dia escreveu que “Um Verão de Amor é o mais belo dos filmes”.

Jorge Silva Melo, como já vimos, põe “o naturalismo de Mónica e o Desejo acima de todos”, e, embora não incluísse o nome de Bergman na lista dos seus cineastas preferidos – Nem numa galeria dos 20”, realça –, acrescenta-lhe Rumo à Felicidade e Em Busca da Verdade, da fase inicial, Luz de Inverno, da fase mais religiosa, e Da Vida das Marionetas, da fase alemã.

Uma faca que corta fundo

Ingmar Bergman disse uma vez que “o mundo das mulheres” era o seu universo. Referia-se certamente à sua vida pessoal, em que, como se sabe, foi sucessivamente casando e descasando com muitas das suas actrizes. Mas referir-se-ia também ao seu cinema?

Rita Azevedo Gomes discorda: “A mim não me ocorreria pensar em Bergman como ‘o cineasta das mulheres’. A sua faca interior corta fundo à primeira e recai sobre qualquer cabeça, trespassa qualquer alma. E se Bergman é impiedoso quando fala e filma, sei que não é desamor. Ao contrário.” E a realizadora de A Vingança de Uma Mulher, também encenadora e artista, cita o making of da produção televisiva Na Presença de Um Palhaço (1997), um dos seus últimos trabalhos, para mostrar como nele “a vida e o cinema se fundem num mesmo gesto”. “Bergman era capaz de estabelecer um ambiente de confiança e de cumplicidade, ao ponto de me fazer sentir alguma inveja, com pena de não poder fazer parte daquilo. Que alegria, que ternura e que prazer entre todos. E como se divertiam a trabalhar!”, nota.

Já sobre a influência de Bergman sobre as gerações de cineastas que lhe sucederam no mundo inteiro, Roma Torres, Silva Melo e António Costa citam, como o mais óbvio, Woody Allen (Intimidade), mas também alguns filmes de Lars von Trier – nota o ex-crítico do Jornal de Notícias – e Andrei Tarkovski (O Sacrifício, lembra Costa) parecem impregnados da sua herança.

No cinema português, o encenador dos Artistas Unidos não vê sequelas – “Em Portugal, a burguesia é mais tacanha”, diz –, mas acha que “Manoel de Oliveira o ouviu bem quando fez Party, aquele estranho filme açoriano”. E Roma Torres também encontra afinidades entre ambos, nomeadamente em O Passado e o Presente e em Benilde ou a Virgem-Mãe, acrescentando-lhe ainda o nome de “António Macedo, particularmente em Domingo à Tarde”.

“Mas a influência tutelar de Bergman terá sido principalmente sobre o próprio cinema sueco, embora talvez o mundo pós-moderno e fragmentário dos tempos actuais se compagine mal com um cineasta que valoriza o contexto e o sentido”, diz Roma Torres.

Apesar disso – e regressando a Rita Azevedo Gomes –, “não herdámos todos o cinema de Bergman”?

A Meio da Noite com Olga Roriz

Quem de algum modo confirma que sim é a coreógrafa Olga Roriz, que lhe dedicou a criação A Meio da Noite, estreada em Abril no Porto e que entretanto se encontra em digressão pelo país, subindo este sábado à noite (22h00) ao palco do Festival de Almada.

“Não quero ser uma bergmaniana [a coreógrafa já tinha confessado, de resto, que prefere Tarkovski], nem quero representar nenhum filme dele; o que quis foi perceber o ponto emocional que a sua obra toca em mim e nos meus bailarinos”, diz Olga Roriz ao PÚBLICO, falando da sua criação.

A coreógrafa – que acha que, “lamentavelmente, está a fazer-se pouco em Portugal” relativamente ao centenário de Bergman – recorda que partiu para A Meio da Noite vendo mais de 50 dos seus filmes e tendo ido mesmo visitar a ilha de Farö, onde o realizador viveu os seus últimos anos.

Quando chegou ao momento dos ensaios, deu a ver aos bailarinos cinco desses filmes – A Vergonha, O Silêncio, A Paixão, Lágrimas e Suspiros e A Hora do Lobo – e viajou com eles para esse lugar simultaneamente assombrado e libertado do cinema de Bergman. E quem está familiarizado com a sua obra vai reconhecê-la nas cenas de A Meio da Noite, acredita a coreógrafa: “Nas personagens dos filmes, nos textos de Strindberg, na música de Bach, Mozart e Schubert…”

Em Outubro, a digressão de A Meio da Noite vai cruzar-se com a homenagem que está também já anunciada pela Leopardo Filmes e pela Medeia Filmes com uma nova retrospectiva que dará a ver mais de uma vintena de títulos de Bergman. Entre eles estão três que não constaram das operações idênticas promovidas em 2014 e 2015 (que, no conjunto, mobilizaram perto de 38 mil espectadores): A Hora do Lobo, A Vergonha e A Paixão.

Esta retrospectiva, além de poder ser vista em Lisboa e no Porto, vai chegar, entre 11 de Outubro e 15 de Novembro, a Coimbra, Braga, Setúbal e Figueira da Foz. Inclui a estreia portuguesa de dois documentários exibidos no último festival de Cannes: Searching for Ingmar Bergman, de Margarethe von Trotta, e Bergman – a Year in a Life, de Jane Magnussen. E tanto Paulo Branco (proprietário da Medeia e da Leopardo) como Olga Roriz estão a tentar que a homenagem possa contar com a presença, em Lisboa, de Liv Ullmann, uma actriz e uma mulher fundamental no cinema (e na vida) do sueco.

Já a Cinemateca Portuguesa reserva para Novembro a sua evocação do cineasta. Não com um programa específico, mas no âmbito das “cartas-abertas” que vem dedicando a outras cinematecas europeia, e que nesse mês será atribuída à sua congénere sueca, que incluirá a obra do realizador no seu calendário.

Mas já por estes dias será possível (re)ver, em salas de Lisboa e do Porto, o último filme de Bergman, Saraband; e a RTP anuncia para esta segunda-feira um serão com a exibição de Lágrimas e Suspiros e do documentário Ingmar Bergman – O Olhar do Coreógrafo.

No resto do mundo, vive-se uma autêntica “bergmanmania”, com uma programação que começou já no início do ano e vai estender-se por 2019: tem retrospectivas, exposições, novos documentários e produções de teatro, de marionetas e de ópera, concertos, edições de biografias e ensaios. E até concursos de xadrez, numa referência explícita a um dos títulos mais icónicos da sua filmografia, O Sétimo Selo. E, apesar de ter desaparecido em 2007, Bergman parece ter vencido o jogo que Antonius Block (Max von Sydow) aí disputou com o persistente homem vestido de negro e com a gadanha em punho.

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