No hospital de Barcelos “small is beautiful” e funciona

É um hospital pequeno, a funcionar “numa espelunca” do século XIX, e que ainda há poucos anos estava ameaçado de fecho. Agora, é considerado o melhor hospital do grupo dos da sua dimensão. O segredo? “É o envolvimento de todos.”

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Com 117 camas e duas salas operatórias, o hospital tem um corpo de 598 profissionais Nélson Garrido

“Será que estou no sítio certo?” A pergunta, feita a bold no cartaz colocado à porta do serviço de urgência do Hospital de Santa Maria Maior, em Barcelos, há-de ficar a martelar na cabeça dos cerca de 70 mil doentes que entram em média por ano nas urgências daquele que foi, no ano passado, distinguido como o melhor hospital do Grupo B (os de menor dimensão), num ranking feito pela IASIST, uma multinacional de origem espanhola que avalia o desempenho de 41 dos 50 hospitais públicos portugueses.

Nas quatro edições do prémio, foi a terceira vez que o hospital de Barcelos recebeu a distinção. E o cartaz pespegado à porta das urgências ajuda a explicar por que é que um hospital que perdeu a maternidade, que esteve para ser devolvido às misericórdias e que, nas palavras do próprio director clínico, Rui Guimarães, funciona “numa espelunca”, foi distinguido como o melhor do país no grupo B. É que os responsáveis deste hospital não se limitaram a acatar as orientações da tutela e que vão no sentido de dizer aos doentes que, se recorrem às urgências hospitalares à procura de uma consulta, estão no sítio errado, como se lê no mesmo cartaz.

O que este hospital fez para reduzir o crónico problema das falsas urgências foi inventar um software, com o apoio da Administração Regional de Saúde do Norte, que lhes permite reencaminhar os doentes não urgentes (cores verde e azul, na triagem de Manchester) para os centros de saúde da região. “É um projecto inovador e experimental que está a ser testado desde o dia 21 de Maio”, enquadra o presidente do Conselho de Administração, Joaquim Barbosa, que foi o primeiro a aderir ao projecto. Na prática, se um doente chega ali por causa de uma verruga, um nódulo ou uma dor que persiste nas costas desde há 15 dias, como exemplifica Rui Guimarães, pegando em casos recentes e concretos, o que lhe é dito na recepção é que, em vez de se quedar à espera, tem oportunidade de ser visto por um médico de família. “A consulta pode ser no mesmo dia ou, o mais tardar, no dia seguinte e, como o software nos permite aceder à agenda com as vagas reais de consulta nos centros de saúde que aderiram ao projecto-piloto, o doente sai daqui com um papel com a marcação da consulta e com o nome do médico que o vai ver e fica dispensado de pagar a taxa moderadora."

A comunicação tem de ser eficaz para evitar que o doente se sinta escorraçado. “A adesão é sempre voluntária. O objectivo é criar progressivamente nos utentes menos graves uma literacia que lhes permita optar pelos centros de saúde”, anuncia Barbosa. E, de caminho, acabar com a pescadinha de rabo na boca que foi criada pelos próprios hospitais que, porque eram pagos por volume de urgências, não desincentivavam como deviam o recurso às mesmas por parte da população.

“Em 2011, nós estávamos com 60,42% de falsas urgências, o que quer dizer que, em cada dez ‘fregueses’ que entravam aqui, seis não tinham razão para cá vir. Agora, estamos com 48,7% e a nossa meta – ambiciosa – é chegar aos 45% de falsas urgências até ao final do ano”, precisa Rui Guimarães, para acrescentar que, àquele, se soma ainda o propósito de baixar os 70 mil episódios de urgência em média por ano para 55 mil.

Num hospital cujos doentes chegam a ser acamados nos claustros, onde já foram instaladas calhas e cortinas para o efeito, os resultados obtidos com este projecto de combate às falsas urgências já despertaram a atenção de outros hospitais. Tanto que os de Vila Nova de Gaia e da Póvoa de Varzim “já pediram para vir ver como é que isto funciona”, segundo Rui Guimarães, que, enquanto conduz o PÚBLICO numa curta visita pelos diferentes serviços, vai tratando todos os funcionários pelo nome e explicitando a importância, para a criação de um sentimento de pertença, de pormenores como terem afixado uma placa com os nomes dos médicos num dos átrios do edifício e terem criado um email institucional para todos os profissionais. “Era algo que não existia até ao ano passado.”

“Heróis das trincheiras”

A funcionar num edifício do século XIX, concebido para funcionar como asilo de inválidos, o hospital de Barcelos foi complementado, em 1970, com um novo bloco, unido ao antigo por uma ponte aérea. Mas, num e noutro caso, as instalações estão, além de degradadas, desadequadas à função esperada de um hospital cuja área de influência abrange 150 mil habitantes de Barcelos e Esposende.

Com 117 camas e duas salas operatórias, o hospital tem um corpo de 598 profissionais. Nestes incluem-se 188 médicos, dos quais 85 são prestadores de serviços e 43 internos. Quando o actual Conselho de Administração (CA) assumiu funções, em Março de 2016, “o pessoal tinha atirado a toalha ao chão”, recorda Guimarães. A desmotivação generalizada arrastava-se desde que, uma década antes, em 2006, o então ministro da Saúde, Correia de Campos, decidira fechar-lhes a maternidade. “Na altura, o que propunham em troca era uma viatura de emergência médica, VMER, que está cá, e a transformação da maternidade numa cirurgia de ambulatório, além de um hospital de dia para, em parceria com o hospital de Braga, tratar os doentes oncológicos. E o último projecto era a construção de um edifício novo. Havia já um plano funcional para isso mas, com a troika e a história da devolução de hospitais às misericórdias, o pessoal achou que este hospital não tinha futuro. E o pior que pode acontecer a um hospital velho como este é ter os profissionais desmotivados”, recua Rui Guimarães.

O remédio foi ser fiel ao princípio segundo o qual “as pessoas são a chave de uma organização”. Desde logo, a ausência de hierarquias intermédias permitiu que o contacto se fizesse directamente entre o CA e os chefes de equipa. “As chefias estão muito próximas e envolvidas nas metas institucionais que são previamente anunciadas”, diz Joaquim Barbosa.

Cada nova contratação, do assistente operacional ao cirurgião, tem direito a fotografia de boas-vindas na página do Facebook. Num dos posts mais recentes são pedidos “likes” para as cozinheiras do hospital que são profusamente elogiadas por um dos doentes. Continua-se o scroll down e encontra-se a republicação de um anúncio num jornal que uma doente decidiu publicar para agradecer publicamente os cuidados da equipa de ortopedia que a operara. Tudo serve para “levantar a moral”.

E quem para ali vai já sabe que vai trabalhar numa lógica de “heróis das trincheiras”, como descreve Rui Guimarães, o que, na prática, pode querer dizer que o mesmo médico que prescreve a necessidade de uma gasimetria "sabe que pode ter que ser ele a ir buscar a seringa, a abri-la, fazer a colheita, levá-la à máquina, fazer a análise e a introduzir os resultados no computador".

Doentes chegam do Algarve

Ninguém precisa de andar com um cronómetro na mão para garantir uma produtividade acima da média. Esta vê-se, por exemplo, nos 32,3 doentes padrão por médico, num grupo cuja fasquia mais baixa se situa nos 15,1. E vê-se também no aumento, no primeiro trimestre deste ano, de 24% das cirurgias feitas em regime de ambulatório, isto é, com tempo de internamento inferior a 24 horas.

E, tendo conseguido cumprir os tempos de espera para as cirurgias nalgumas das diferentes especialidades que detém — cirurgia geral, ortopedia, oftalmologia e otorrinolaringologia, isto no campo cirúrgico —, o hospital ainda conseguiu candidatar-se a receber doentes de outros hospitais para cirurgias ortopédicas e oftalmológicas, o que constitui um financiamento extra contrato-programa.

“Procuram-nos os doentes dos hospitais vizinhos e até do Algarve”, orgulha-se Joaquim Barbosa, para explicar que o respeito pelos tempos de resposta se conseguiu por via de uma ocupação a 100% nos horários de base do bloco operatório — tardes de sexta-feira incluídas — e da programação de cirurgias adicionais para três sábados de cada mês.

Nada disto seria possível se o hospital não tivesse sabido transformar a sua pequenez numa vantagem, numa lógica de “small is beautiful”, conforme os descreveu o actual ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes. E, com isso, tornaram-se atractivos para médicos recém-especializados, oriundos sobretudo de Braga e do Porto. “Num hospital grande somos só mais uma roda na engrenagem. Num hospital pequeno como este, achei que tinha mais oportunidades para crescer, de fazer coisas mais diferenciadas e de evoluir mais depressa na carreira”, justifica Sérgio Monteiro, um oftalmologista de 34 anos que, desde Abril de 2015, percorre diariamente os cerca de 70 quilómetros entre o Porto, onde reside, e Barcelos, onde trabalha.

Dois anos depois, garante que não se arrepende. “E, hoje, já há muitos médicos que acabaram a especialidade e que estão interessados em trabalhar cá”, conclui. Para estes, ao contrário do que acontece com os “falsos” doentes urgentes, há um cartaz de boas-vindas, com direito a registo fotográfico no Facebook.

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