“Estamos a desacreditar o sistema com o incumprimento reiterado dos tempos de resposta”

Finanças, Saúde, administradores hospitalares. “Neste momento existe uma relação de desconfiança mútua”, diz a sub-directora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical e ex-presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, Marta Temido.

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Marta Temido: "Deixámos de ter uma estratégia precisa de controlo da despesa" Pedro Granadeiro/NFACTOS

Naquela que é primeira entrevista que dá após ter deixado o cargo na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em 2017, Marta Temido, reflecte sobre o problema da dívida nos hospitais e propõe algumas estratégias para solucioná-lo. “Precisamos de mais verbas, mas precisamos de melhor gestão”, diz. Mas também de “uma estratégia clara, de um alinhamento entre os actores” e de medidas que “são muito impopulares”.

Porque é que as injecções de capitais feitas todos os anos não resolvem o assunto da dívida em atraso nos hospitais?
É a prova que as injecções não têm mais do que um efeito pontual no período em que são repercutidas na acção dos hospitais de recuperar pagamentos em atraso. Mas também não deixa de ser interessante verificar que o comportamento da dívida não é constante. Há um ano em que a tendência da subida é mais pronunciada do que noutros. Estamos a falar de 2017, em que temos pressões muito grandes do ponto de vista de custos com pessoal, também da tecnologia, dos fornecimentos e serviços externos em termos de exames. O que toda a gente pergunta é como que se resolve esta situação de precisarmos de ser mais eficientes.

E como se resolve?
Todos os sistemas de saúde têm este tipo de dificuldades. A questão é o tipo de resposta que lhes conseguimos dar. Deixámos de ter uma estratégia precisa, ou pelo menos uma em que todos os actores estejam alinhados, de controlo da despesa. Só temos uma reclamação: que é preciso mais financiamento e que o sistema está subfinanciado. E está.

Recordo que fiz esse comentário logo no início das minhas funções como presidente da ACSS e que na altura isso não foi bem entendido, porque era uma fase em que ninguém queria assumir que o financiamento que tínhamos para a saúde era insuficiente. Mas o que é facto, é que o que temos tido através destas situações, designadamente dos capitais estatutários — que não vão ao défice e são escolhidos como uma operação deliberada —, é a assunção que o orçamento inicial não chega para cobrir as necessidades mais que previstas. Por ai, temos de ter iniciativas. Mas também temos de ter iniciativas do ponto de vista do controlo da despesa. Precisamos de mais verbas, mas precisamos de melhor gestão.

Que medidas podiam ser essas? Até que ponto a questão divida é consequência ou reflexo da falta de autonomia?
Não é possível dar autonomia sem termos uma relação de confiança. E o que se passa é que neste momento existe uma relação de desconfiança mútua. Das finanças em relação à saúde, da saúde em relação às finanças, da saúde em relação aos seus administradores, dos administradores em relação à saúde. Para um observador externo — é nessa posição que neste momento me coloco —, há uma grande degradação da forma como as entidades se relacionam e como encaram as suas várias responsabilidades. Eu, como gestora, não posso ser indiferente à conta que apresento às finanças.

E os gestores são indiferentes?
Não digo que os gestores sejam indiferentes, mas temos de perceber que quando queremos aumentar custos por força de uma qualquer política que queremos implementar, temos de encontrar medidas compensatórias noutro sítio. Tivemos nos anos mais recentes efeitos de medidas transversais na administração pública na área dos recursos humanos: reposições de horários de trabalho em 35 horas, reposições salariais, agora a questão das progressões. Agora temos de ter um plano concreto para sermos mais eficientes e conseguir atenuar os efeitos desses custos crescentes com o factor trabalho.

Nos anos da crise o que fizemos foi embaratecer o valor do trabalho, agora aumentámo-lo. Então temos de ser mais produtivos e isso implica fazer um conjunto de escolhas que provavelmente não são politicamente muito simpáticas. Estou a falar de temas de que temos recusado falar sempre. Exclusividade, modelos remuneratórios nos cuidados de saúde primários, melhor combinação de papéis profissionais, liderança e avaliação e despedimento quando não se apresentam resultados, utilização das tecnologias de informação.

Como se melhora a eficácia dos recursos humanos quando se admite que eles são poucos?
Lá por serem poucos, não quer dizer que estejam a trabalhar bem. O excesso de trabalho e burnout não podem ser um sítio que nos isenta de fazer mais perguntas. Temos de perguntar se as pessoas estão a trabalhar adequadamente. Temos claramente uma má composição da força de trabalho. Dizemos que temos poucos enfermeiros, mas queria salientar que temos ainda menos auxiliares de acção médica e que não temos sequer uma carreira específica para os auxiliares. Temos muito medo das carreiras especiais e depois acabamos por ser mais ineficientes do que gostaríamos.

Para não fugir à pergunta, sim com a redução da carga horária inevitavelmente temos de fazer um reforço de recursos humanos. Agora será uma questão de fazer as contas. Acho que a questão da exclusividade é crítica. Mais do que isso, os conflitos de interesses. Questão de futuro: perceber se aos recém-especialistas conseguimos propor algo de diferente. E o que se tem feito nos hospitais para melhorar a sua capacidade produtiva? Os problemas que sentimos, de os médicos terem a apetência por ir completar o seu horário ao privado para melhorar os rendimentos, como é que se combate? Houve respostas no passado que entretanto foram afastadas por se ter considerado que faziam perigar a equidade de tratamento.

Quais?
Uma delas, a possibilidade de poder realizar prática privada dentro dos hospitais públicos. Bem sei que é muito contestada. Mas também sei que outros sistemas de saúde recorrem a ela como forma de evitar que os bons prestadores andem no carrossel dos vários serviços e que de alguma forma se traga receita para dentro do hospital público. Não sei se estamos em situação de ser tão dogmáticos em relação a estas coisas.

Dizia como observadora que via que há falta de confiança entre finanças, saúde, administradores. Enquanto esteve no sistema também sentiu essa desconfiança?
Senti e respondi sempre da mesma forma. Se há desconfiança, só há uma forma de a ultrapassar: provar que há motivos para confiar. É não dourar a pílula, não dizer que o dinheiro é suficiente quando ele não é, não dizer que vamos conseguir quando a missão parece sobre todas as perspectivas uma missão impossível. É dizer qual é o melhor que podemos fazer e depois cumprir.

Falámos do que podiam ser medidas estruturais para encaminhar as contas do SNS. Se tomarmos algumas dessas medidas e tomando decisões que até agora ainda ninguém quis tomar, quando é que poderíamos ter as contas minimamente encaminhadas?
Admitindo que temos mil milhões de pagamentos em atraso, isso pode ser a medida do financiamento que falta ao sistema. Temos de ser francos e admitir que como país não temos conseguido canalizar esses mil milhões em atraso directamente do Orçamento do Estado para a saúde. Onde é que os vamos buscar? Há várias possibilidades. Já se falou da questão dos subsistemas voltarem a pagar ao SNS. Já se falou da questão de repor os acordos com a indústria farmacêutica e reconduzir a despesa com medicamentos aos níveis de 1% do PIB — algo que também foi muito tentado, mas que eu sei que não foi levado às máximas possibilidades.

Aqui gostava de tocar num tema crítico, que é a questão das despesas das famílias — o out of pocket. Que está em 30% e que, visto de fora, é das primeiras coisas que as pessoas nos dizem: é um mau sinal. Nós sabemos dos livros que quando esse valor é superior a 20%, há risco de que quem precisa de cuidados não esteja a aceder. Nós estamos bastante acima. E quando vemos o que estão a comprar, são coisas que o SNS não lhes dá em tempo.

Como?
Consultas, medicina dentária, as despesas da farmácia... Várias coisas. Temos, na teoria, um SNS, mas é um serviço nacional de saúde que não responde em tempo. Ou seja, a primeira coisa que eu acho que o Ministério da Saúde tem de resolver, e o Governo de Portugal também, é este problema da pressão sobre o acesso. Estamos a desacreditar o sistema — e isso é péssimo — em função do incumprimento reiterado dos tempos de resposta. E isso tem um lado muito pernicioso. Por um lado, legitima os privados a dizer: “estão a ver, estão a ver, temos de vir em vosso socorro” e quem está com a corda na garganta, vende a casa pelo preço que lhe pedem. É muito fácil um Governo pressionado fazer acordos de entrega de consultas, de exames, até de listas de espera cirúrgicas. Do lado da gestão, as medidas exigem uma estratégia clara, um alinhamento entre os actores, levam tempo, e sobretudo são muito impopulares.

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