Saúde tem tudo para ser a grande batalha à esquerda do PS no OE2019

O Parlamento faz hoje a radiografia anual do estado da Nação em quatro horas de debate. Vários temas vão passar pelo plenário, da educação à dívida, da justiça à economia. Mas é a saúde que tem estado debaixo de fogo nas últimas semanas. E vai continuar em cima da mesa no resto do ano, com o OE2019 e a nova lei de bases.

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António Costa e Adalberto Campos Fernandes: não tem sido fácil a vida do Governo na saúde Fernando Veludo/NFactos (arquivo)

Quase três anos depois do início da solução governativa à esquerda, o estado da saúde em Portugal está praticamente como o da chamada “geringonça”: uns dias doente, noutros medicada. Mas sempre pouco saudável. A culpa é das finanças – as do cofre do Estado e as que dão nome à pasta de Mário Centeno. Quem lhes aponta o dedo são precisamente os partidos que dão ajuda ao PS no Parlamento. Bloco, PCP e PEV defendem que, embora a área da saúde esteja melhor do que em 2015, o que se progrediu foi “insuficiente” e há ainda muito por fazer no investimento e no financiamento adequado. É preciso mais dinheiro, melhor gestão e outra política, subscrevem os três.

Depois de um agravamento dos problemas nos últimos meses, com serviços estrangulados, demissões em catadupa de responsáveis administrativos e clínicos, o derradeiro trimestre deste ano poderá trazer alguma luz sobre o futuro da saúde em Portugal. Seja pela via do debate sobre a futura Lei de Bases da Saúde que os partidos querem ver criada no máximo até à Primavera, seja no Orçamento do Estado (OE) para 2019. Para a primeira já há a proposta do BE e as prometidas do Governo e do PCP, mas a esquerda não se entende logo à partida com o PS em várias matérias. As duas discussões vão andar de mãos dadas e condicionar-se mutuamente. O que significa que, depois das questões fiscais, das pensões ou dos professores, a saúde será a grande batalha da esquerda no OE2019.

O Verão, tal como o Inverno, é sempre uma prova de fogo para o sector público da saúde, em especial nas urgências hospitalares de Lisboa, Porto e  Algarve. Mas, este ano, ainda o sol não apertava e já a temperatura subia em alguns hospitais. Para além das ameaças de demissões por falta de condições em diversos centros hospitalares que foram sendo anunciadas, como em Gaia e Espinho, só desde Maio foram concretizados, por exemplo, pedidos de demissão de directores de serviço e coordenadores em Tondela-Viseu, dos chefes de equipa de Medicina Interna e Cirurgia Geral do Centro Hospitalar de Lisboa Central (por falta de condições de segurança das urgências do S. José), dos chefes de equipa de Ginecologia e Obstetrícia da Maternidade Alfredo da Costa por falta de recursos humanos (que já levou ao fecho de algumas salas de parto).

A atitude do ministro da Saúde, que também é médico, tem sido a de desvalorizar. Nesta semana, sobre o caso do Hospital de S. José – uma das unidades com urgências historicamente mais problemáticas -, Adalberto Campos Fernandes reduziu as quase duas dezenas de demissões a “dois ou três chefes de equipa” e considerou “lamentável que se faça um empolamento sistemático de situações pontuais, ocultando a realidade”. A arrogância valeu-lhe a revolta do bastonário da Ordem dos Médicos e críticas fortes do sector.

No Parlamento, há uns meses, quando os parceiros do PS apontavam a falta de investimento e a subalternização de Adalberto ao ministro das Finanças, dizendo mesmo que Mário Centeno é que tutelava a pasta da Saúde, o primeiro não se ficou e respondeu ironicamente “somos todos Centeno”. A criação da unidade de missão partilhada entre as Finanças e a Saúde foi o sinal desse controlo, que serve para protelar o investimento na segunda, aponta o líder parlamentar bloquista Pedro Filipe Soares. Uma medida para contornar o artigo que o PCP fez aprovar no OE2018 que excepcionava das cativações o investimento em infra-estruturas de saúde.

O estado é “péssimo”, mas está melhor

Bloco, PCP e PEV não perdoam esta “centenização” da Saúde e vão exigir mais, muito mais, na mesa do Orçamento. Até porque a questão não está no ministro, mas nas políticas e essas são do Governo como um todo, com o primeiro-ministro à cabeça. “O estado da saúde é péssimo, mas está melhor do que com PSD e CDS. O problema não é o político [Adalberto] é a política”, resume o ecologista José Luís Ferreira. O aviso vem do Bloco: “Tem sido uma política de saúde insuficiente para as necessidades do país e para as expectativas do povo de esquerda, que esperava uma política diferente”, diz Pedro Filipe Soares.

A análise que os três fazem dos problemas até é convergente com a do PS - subfinanciamento crítico, gastos excessivos nas PPP, má gestão de alguns recursos -, mas as soluções são divergentes dos socialistas. Na raiz de tudo, dizem, estão os estrangulamentos da dívida pública e do défice – assuntos que os socialistas não querem abordar pela perspectiva dos parceiros.

PCP e PEV admitem que os problemas das últimas semanas se devem à passagem das 40 para as 35 horas de trabalho semanais e atiram a culpa para a falta de planeamento do Governo, que teve meio ano para contratar, por exemplo, 2000 enfermeiros e ainda não o fez. Estes atrasos na tomada de medidas de gestão ocorreram também nos concursos para os médicos especialistas que terminaram a formação no ano passado e já este ano. Entretanto, esses profissionais “fogem” para o estrangeiro ou para o privado, realça a comunista Carla Cruz. E a sua falta vai somando despesa ao orçamento, porque os hospitais têm que contratar aos privados os serviços que esses médicos podiam estar a fazer no público, como as cirurgias.

O cenário melhorou, diz-se à esquerda do PS. Mas há ainda “muito por fazer”. O ecologista José Luís Ferreira congratula-se com o cumprimento de uma premissa do acordo que o PEV assinou com o Governo: não foi encerrado qualquer serviço de saúde. BE, PCP e PEV lembram que, desde o final de 2015, foi possível contratar alguns milhares de profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, assistentes operacionais – mas continuam a faltar pelo menos 6000, contabiliza a comunista Carla Cruz. O número é comum ou não viesse ele das estruturas sindicais. A abertura de concursos para essas contratações será, por isso, exigência de todos.

Vão também insistir na necessidade de arrancar com a construção de novos hospitais que o Parlamento tem recomendado, mas que o Governo ignora. E se se conseguiu reduzir as taxas moderadoras, os três querem agora acabar com elas, tal como com o pagamento do transporte de doentes não urgentes. A combinação dos dois custos para os utentes levou ao cancelamento de dois milhões de consultas e tratamentos em 2017.

O Bloco avança mesmo com uma fasquia para o reforço do orçamento da Saúde: quer chegar aos nove milhões de euros, à volta dos 5% do PIB, o valor mínimo exigível, diz Pedro Filipe Soares. Tal como os bloquistas que lembram que o programa do Governo previa uma “avaliação das PPP”, o PCP vai insistir na tecla da sua reversão no OE2019. Este ano representam um gasto de 481 milhões de euros, mas a tendência é crescente, diz Carla Cruz, com base na conta geral do Estado de 2017. Nesse ano custaram mais 19 milhões que no anterior. E os 3,8 mil milhões de euros que o Estado transferiu para privados entre PPP, convenções e acordos de cooperação para serviços de saúde representaram um aumento de 104 milhões em relação a 2016. Daí que os partidos critiquem a “canibalização do SNS pelos privados”.

Os partidos chegam ao debate do estado da Nação numa altura em que à esquerda já começaram os encontros de preparação do OE2019 entre Bloco, PCP, PEV e o Governo. Nada de substancial ainda: estão na fase de identificar as grandes áreas em que é preciso intervir. Medidas a sério só lá para os primeiros dias do Outono.

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