A "geringonça" entre o coração e a razão

No debate do Estado da Nação, a esquerda mostrou dúvidas sobre a reinvenção da actual maioria parlamentar, mas o primeiro-ministro sossegou as preocupações e optou pelo silêncio sobre qualquer proximidade ao PSD.

Bancada do Governo
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Bancada do Governo LUSA/ANTÓNIO COTRIM
Heloísa Apolónia, PEV
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Heloísa Apolónia, PEV LUSA/ANTÓNIO COTRIM
Catarina Martins, BE
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Catarina Martins, BE LUSA/ANTÓNIO COTRIM
Jerónimo de Sousa, PCP
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Jerónimo de Sousa, PCP LUSA/ANTÓNIO COTRIM

Sentado à esquerda do primeiro-ministro, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, esteve em silêncio durante todo o debate mas as suas palavras sobre o futuro da "geringonça", ditas há dois dias, pareciam ecoar na sala do hemiciclo. Por isso, a pergunta do bloquista Pedro Filipe Soares saltou logo na primeira hora do debate: “A 'geringonça' ainda está no coração do PS?”. O primeiro-ministro tranquilizou o deputado – “está no coração e na cabeça” – e, depois, Carlos César veio também sossegar a inquietude da esquerda ao dizer que a “convergência nunca prejudicará a identidade de cada um”. Mas ambos alertaram para os riscos das tensões geopolíticas na Europa e avisaram abundantemente para os perigos da imprudência orçamental.

Esses avisos foram lançados logo na intervenção de arranque do primeiro-ministro: “Não podemos pôr em causa tudo aquilo que construímos”. Foi a primeira de outras frases - “não podemos dar um passo maior que a perna”; “temos de dizer claramente o que é possível e o que não é” – para acenar com o fantasma de uma nova crise económico-financeira. As dúvidas sobre a estratégia futura da "geringonça" foram visíveis. Jerónimo de Sousa, líder do PCP, quis saber, afinal, qual o caminho que o Governo quer fazer, depois de celebrar as conquistas nos últimos dois anos e meio – “a vida avançou no bom sentido”.

A insistência foi-se fazendo ouvir ao longo do debate. "Quer o Governo levar mais longe a reposição de direitos ou travar o passo?", questionou Jerónimo de Sousa, desafiando o executivo a fazer “escolhas” e a “romper com os constrangimentos da submissão ao euro e do serviço da uma dívida insustentável”. O líder comunista deixou, assim, clara a posição do partido sobre a Europa depois de Augusto Santos Silva ter colocado as políticas europeias e externas como parte de um eventual futuro entendimento à esquerda.

Pelo BE, Catarina Martins também se queixou da intromissão de Bruxelas nos cortes no investimento na saúde, transportes, educação, ciência, cultura e território. Mas não se colocou à margem: “Temos de falar de política europeia”.

A deputada ecologista Heloísa Apolónia aconselhou o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a fazer “menos futurologia” e trouxe a lume o descongelamento da carreira dos professores que representa uma “ninharia” face ao orçamento da Defesa. Depois de ter ouvido o primeiro-ministro, a deputada do PEV registou o tom de prudência orçamental, ou seja, o Governo está a pôr o “pezinho no travão”.

António Costa, em resposta às dúvidas da esquerda sobre o futuro desta aliança, foi-se sempre mostrando disponível para “continuar” o trabalho em matérias como o combate à precariedade laboral. “Enquanto houver caminho para percorrer, estamos aqui para percorrer esse caminho", disse. E se a auto-estrada estiver congestionada “não podemos andar a 120 km”, avisou.

Os sinais de que há condições para “reinventar” a "geringonça" foram deixados pelo ministro-adjunto Pedro Siza Vieira mas sobretudo por Carlos César, também presidente do PS. “Continuaremos, certamente, esse trabalho, reforçando e reinventando, como o temos feito, uma convergência” com as forças políticas à esquerda, assegurou César, que não poupou nos qualificativos: uma cooperação que foi até agora “tão inovadora e tão recompensadora” para o país. A (re)aproximação foi evidente. 

Foi a bancada bloquista que deu conta de outros namoros do PS junto do “PSD de Rui Rio” e acenou com o fantasma do “centrão”. Mas sobre os acordos com o PSD nem uma palavra se ouviu do Governo ou do PS. Nem sobre os actuais nem sobre futuros entendimentos.

Negrão conquista bancada

O PSD também não se pronunciou sobre os acordos que já celebrou com o Governo nem sobre a proximidade em algumas matérias. A julgar pelo discurso do líder da bancada do PSD, os dois lados estariam até bem afastados (mas nem por isso o PSD pareceu mais próximo do CDS).

Fernando Negrão defendeu que a actual solução de Governo está esgotada, provocando um sentimento de quase euforia na sua bancada. Usou vários exemplos - professores, regresso de 35 horas na função pública, serviços da saúde, as vítimas de Pedrógão Grande e da região centro e aumento de precários no Estado - para lançar uma pergunta sucessiva: “Se isto não é um Governo esgotado, então o que é?”.

Apesar de reconhecer os resultados alcançados nas contas públicas, o líder da bancada do PSD foi duro para o Governo, apontando a actual maioria como “demagógica” e “ilusionista”. E contrariou o primeiro-ministro: “Ao contrário do que diz esta 'geringonça' não está no coração dos portugueses”. Defendendo que esta legislatura foi uma “oportunidade perdida”, na linha do que era também a argumentação da anterior liderança do PSD, Fernando Negrão enunciou algumas das políticas que o partido teria assumido, se fosse Governo, como o fomento da competitividade fiscal e a reforma da Segurança Social.

Com aplausos entusiastas da sua bancada, Negrão elogiou a herança deixada pelo anterior Governo e da qual o PS “está a colher frutos”, o que gerou até alguns protestos entre os socialistas. A falta de reformas foi outra das críticas apontadas e que são atribuídas à influência da esquerda, cuja natureza “é como a do escorpião, não resiste a fazer o mal quando pode e promete fazer o bem”. Sinal de que o discurso agradou aos sociais-democratas foi o gesto do ex-líder parlamentar Hugo Soares que saiu do seu lugar no topo da bancada para cumprimentar Fernando Negrão na primeira fila.

Ao lado, a líder do CDS-PP também alinhou por um retrato crítico das consequências da governação no país, mas sobretudo ensaiou uma demarcação da proximidade entre PS e PSD. Assunção Cristas assumiu estar “na linha da frente da construção de uma alternativa” não socialista. A ideia de querer ser “a primeira” escolha no centro-direita vem desde o congresso de Março. Agora, a líder do CDS acentua também a distância face ao seu antigo parceiro de Governo. “Uma alternativa [em construção no CDS] que não sonha com um bloco central de interesses, o eterno Tratado de Tordesilhas da política portuguesa”, afirmou.

Prometendo uma “oposição acutilante ao Governo das esquerdas encostadas”, Assunção Cristas descreveu a postura do partido como “construtiva” de uma “alternativa” que não remete “para futuro oportuno” e que se vai “revelando a cada mês, a cada pacote legislativo”. A líder do CDS enunciou temas em que apresentará propostas – demografia, saúde, justiça, clima, agricultura, interior e mar – enquanto o líder da bancada do PSD foi mais contido sobre a agenda dos próximos tempos. 

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