No Museu do Anacronismo Narcisista Português

Sustentar em 2018 que a única forma de lidar com essa história é, ao mesmo tempo, esquecê-la e glorificá-la é um atalho para perpetuar o anacronismo como modo de vida, impor o relativismo ético como máscara narcísica e negar aos portugueses o direito à sua história.

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Sabemos que o debate sobre o Museu das Descobertas atingiu um nível de intensidade inusual quando, no dia do seu 95.o aniversário, Eduardo Lourenço confessa em entrevista à Agência Lusa achar extraordinário que “um país com menos problemas graves e de difícil resolução no mundo seja objecto desta espécie de penitência pública" (Lusa, 23/05/2008), escolhendo assim interpretar como acto penitente o exercício crítico proposto pela carta aberta que vários investigadores das humanidades e ciências sociais publicaram em Abril passado no semanário Expresso, e que questionava a pertinência conceptual e terminológica do projecto do museu que Fernando Medina inscreveu no seu programa eleitoral.

Por outro lado, sabemos que o mesmo debate atingiu o nível dos escafandros quando, em resposta à carta aberta publicada neste jornal por 100 portugueses afrodescendentes — na qual se rejeita o silenciamento e invisibilidade (alternada com a hiper-representação depreciativa) a que a sociedade portuguesa tem votado uma parte de si própria —, o jornalista Manuel Carvalho publica neste mesmo jornal um artigo com o escorregadio título “O duro fardo de ser português”, e que lista no seu parágrafo inicial um conjunto de curiosíssimas propostas iconoclastas da sua exclusiva autoria (e que incluem a eliminação da esfera armilar da bandeira, a supressão do estudo de Os Lusíadas, a dinamitagem da Torre de Belém e do Padrão dos Descobrimentos, o arrasamento de Goa, Ouro Preto e Moçambique, o apagamento dos nomes dos navegadores da toponímia das cidades, e a proibição das Décadas da Ásia de João de Barros), mas que em consumada má-fé atribui aos críticos do projecto de Medina sem que se dê ao trabalho de documentar essa atribuição.

Como o mais celebrado ensaísta vivo em Portugal equipara o escrutínio crítico à penitência, e assim junta a sua à voz de todos aqueles que nunca se deram ao trabalho de interpretar O Colonialismo como nosso impensado, é um mistério que por mim permanecerá insondado, não sendo todavia insondável; que o autor de um artigo de opinião de questionável gosto, e que investe na dinamitação da ética do debate, chegue a director de um diário de referência mostra que o museu de Medina já singrou enfunado para maus portos antes de ter saído do papel. Começa a ser penoso intervir num debate tão inquinado, e no entanto é imperioso não perder de vista a forma como ele tem espelhado a sociedade que o alimenta, num momento histórico que é crucial para o futuro da democracia em Portugal e na Europa.

Desde logo, o mal-estar revelado pelo debate sobre o museu não é isolado — revelou-se também nas reacções à carta aberta que no ano passado reagiu às anacrónicas declarações do Presidente da República em Gorée, ou aos protestos contra a ignóbil estátua do padre António Vieira inaugurada também no ano passado em Lisboa. Na verdade, o anacronismo tem sido o crime hediondo de que são acusados todos e quaisquer críticos da permanência da ideologia colonialista na forma como os portugueses se relacionam com a sua história. Diz-se à sociedade que não se deve olhar para actos passados com o ponto de vista do presente, pois os contextos históricos são distintos, omitindo, no entanto, que nenhum historiador vive num limbo temporal, e que é o presente que solicita a viagem ao arquivo.

Acontece que os arquivos revelam um passado histórico complexo que não confirma a visão edificante que desse passado ainda hoje se ensina nas escolas — e numa sociedade democrática a relação que a escola está obrigada a fomentar entre os cidadãos e a sua história é de natureza crítica, e não mítica. Ora, o espírito crítico não pode formar-se num ambiente em que anacronicamente se conservam e impõem ao espaço público posições discursivas que se propõem como inquestionáveis e que, a serem implementadas, implicariam o fim da democracia. Houve um momento em que os portugueses foram levados a acreditar que o seu papel histórico em diversas latitudes do mundo era civilizador, que a sua cultura era superior à dos povos por si subjugados, e que o seu direito à pilhagem e à mão de obra gratuita era de origem divina. Esse período terminou em 1974-75.

Sustentar em 2018 que a única forma de lidar com essa história é, ao mesmo tempo, esquecê-la e glorificá-la é um atalho para perpetuar o anacronismo como modo de vida, impor o relativismo ético como máscara narcísica e negar aos portugueses o direito à sua história, a qual inscreveu nas suas páginas a rejeição inequívoca do colonialismo e o respeito pela humanidade dos povos que conquistaram o direito à sua autodeterminação. Ora, uma vida em conformidade com os valores democráticos implica o enfrentar desassombrado da história, não a sua ocultação. Tal está longe de ser garantido num projecto de museu, tal como o debate o revelou até agora, e numa sociedade que erige estátuas em que o paternalismo em relação a povos subjugados surge travestido de defesa dos direitos humanos. O tempo não está para celebrar uma visão passadista da história, mas para reconhecer como portugueses de pleno direito, aqueles cujos antepassados foram pelos portugueses transportados nos porões de navios, para construírem os tais novos mundos que os portugueses deram ao mundo. Este não é um projecto penitente, é um projecto decente.

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