Trump, um extorsionista nato

O mundo pós-NATO já começou. E foi Trump que deu o tiro de partida.

Façamos o seguinte exercício de memória. Lembram-se de, aqui há uns anos, a União Europeia começar a discutir o Galileo, o sistema de navegação por satélite concorrente ao GPS norte-americano? Na altura, o Reino Unido tentou parar o projeto alegando que não valia a pena “duplicar” esforços quando os EUA tinham um sistema semelhante, com um duplo uso civil e militar. Quando foi claro que o Galileo iria para a frente, o Reino Unido insistiu para que a utilização deste, nas suas valências de defesa e segurança, fosse limitada aos países da UE. Mais recentemente, o Reino Unido protestou com veemência por, após o "Brexit", poder ficar fora do Galileo.

E porquê isto tudo? Porque se não houvesse Galileo preparado para estar operacional em 2020 os países da UE poderiam simplesmente ficar às escuras se os EUA decidissem desligar o GPS — e podem fazê-lo — numa situação de conflito militar.

Cenários rebuscados, eu sei, mas é de cenários rebuscados que se faz a preparação para os tempos que aí vêm. E não é preciso nenhum cenário rebuscado para que possamos estar gratos a quem insistiu para que o Galileo — um programa europeu e inteiramente civil — se fizesse. Por muitos sorrisos que tenham feito ao sair da cimeira da NATO, não deve haver um governante europeu responsável que tenha vindo de lá arrependido por não estar exclusivamente dependente do GPS.

A razão é simples: o mundo pós-NATO já começou. E foi Trump que deu o tiro de partida.

Pouco importa se as últimas notícias saídas da cimeira diziam que Trump, afinal, está interessado na NATO. Uma aliança militar não pode estar dependente de mudanças de humor. O que importa é que Trump é um mero extorsionista e ninguém com dois dedos de testa põe a sua segurança nas mãos de um extorsionista. Se Trump diz à hora do almoço que quer que os países da NATO paguem 2% em gastos de defesa e, depois de estes aceitarem, decide dizer que eles têm de pagar 4%, não há nada que o impeça de na próxima vez dizer que os países europeus têm de pagar 5, 6 ou 7%. E ainda depois disso dizer que não chega ou que não sabe se quer cumprir com a sua parte dos tratados.

O comportamento de Trump só faz sentido à luz da psicologia do manipulador. Quem se lembre daquele colega da escola ou do miúdo da rua que num dia se aproxima de alguém para fingir que lhe vai bater mas afinal lhe dá um abraço, e no dia seguinte finge que vai dar um abraço mas bate à socapa, não precisa de mais nada para conhecer Trump. O título do PÚBLICO de hoje é elucidativo: “Trump reafirma apoio à NATO depois de lançar o pânico”. Lançar o pânico, reafirmar apoio, e depois repetir, mas ao contrário: o extorsionista precisa que as suas vítimas estejam sempre em tensão, sempre na dúvida, sempre na instabilidade.

O que fazer perante tal criatura? Fazer-lhe frente seria uma hipótese — se a Europa soubesse ou pudesse. Não sabendo nem podendo, resta à Europa a atitude cautelosa: recuar lentamente e sem gestos bruscos para depois fazer os seus trabalhos de casa e organizar-se para deixar de estar dependente de Trump. Não é pelos sorrisos de circunstância que veremos se os líderes europeus levam a sério o mundo pós-NATO.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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