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Para Trump a lei da selva, a lei do mais forte, é o terreno privilegiado, o mais propício à afirmação do poder americano, do seu poder [pessoal].

A Cimeira da NATO em Bruxelas foi mais uma ocasião para Donald Trump afirmar o seu desdém pelas organizações internacionais. Qual tubarão apanhado numa rede, Trump morde qualquer fio que possa limitar a sua margem de ação unilateral. 

Trump quer que as relações internacionais regressem à lei da selva, ao “estado de natureza” de que falava Rousseau, em que apenas o poder e a força determinam as relações entre os Estados e o futuro da paz e da guerra.

Os Estados Unidos, depois da Segunda Guerra, assumiram-se como líderes de uma ordem multilateral, com a criação das Nações Unidas e de uma rede de organizações através das quais se prescrevem normas que enquadram e limitam a ação dos Estados, e que permitem também preservar a paz.

O fim da Guerra Fria permitiu avanços muito significativos no aprofundamento da ordem multilateral, da Organização Mundial do Comércio (OMC) ao Tribunal Penal Internacional, da aprovação do princípio da Responsabilidade de Proteger às Cimeiras no domínio do Ambiente, que culminaram com o Acordo de Paris, em 2016 – pouco antes da eleição de Donald Trump.

Esta ordem foi possível, também, porque os Estados Unidos e os seus aliados da NATO combinaram a defesa do multilateralismo com a força necessária à dissuasão de aventuras militares. A NATO foi concebida como um pilar da ordem multilateral na Europa, como afirma o seu tratado fundador “no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas”

Donald Trump chegou à Casa Branca com a ambição desmedida de fazer dos EUA, de novo, a potência hegemónica que foi, brevemente, no período que se seguiu à desintegração da União Soviética, pondo em causa os acordos multilaterais.

Para Trump a lei da selva, a lei do mais forte, é o terreno privilegiado, o mais propício à afirmação do poder americano, do seu poder [pessoal]. Aliás, o seu desdém pelos constrangimentos impostos pelas normas não se restringe às relações externas, é também evidente na ordem interna, com a sua visão de democracia iliberal e oposição aos mecanismos do Estado de direito.

A NATO é um legado da Guerra Fria, com a função central de manter o equilíbrio europeu, condição necessária à paz no Continente e dissuasor do regresso à política de potência, como se viu com a sua intervenção no conflito da Bósnia. Porém, forçoso é constatar que o seu envolvimento em conflitos extraeuropeus, nomeadamente no Afeganistão e na Líbia (com as consequências trágicas que hoje conhecemos), fragilizaram a sua legitimidade e acentuaram a perceção de que se trata de um instrumento da projeção do poder dos Estados Unidos.

Para a estratégia de Trump, mesmo assim, a NATO é mais um empecilho do que um trunfo. Primeiro, porque a vê como um instrumento ao serviço da segurança da União Europeia; depois, porque dificulta a relação com Rússia de Putin – para quem a NATO é uma ameaça. 

Os mais poderosos parceiros da NATO são vistos por Trump como inimigos comerciais (caso da Alemanha), como aliados dos seus inimigos internos, os liberais americanos, e como opositores dos seus aliados populistas e nacionalistas europeus. Os seus ataques contínuos a Angela Merkel, por exemplo, nada têm a ver com a dependência energética da Alemanha, são antes uma forma de dividir os europeus e procurar descredibilizar as críticas , nas vésperas do seu encontro com Putin, tanto mais que a chanceler alemã tem defendido sanções contra a Rússia desde a anexação da Crimeia e a intervenção no leste da Ucrânia.

Não nos enganemos, o verdadeiro alvo de Trump não é a NATO, é a União Europeia – como atesta o seu reafirmado  apoio ao Brexit e à extrema-direita europeia, anti-imigrantes.

A questão das despesas militares, que Trump colocou na agenda de forma tão brutal, exigindo um aumento das despesas para 4% do PIB (o dobro dos 2% a que os Estados membros se comprometeram a atingir em 2024) é uma forma de colocar nos europeus a responsabilidade do enfraquecimento dos laços transatlânticos e do envolvimento dos Estados Unidos na segurança europeia. Aliás, são as preocupações com a credibilidade da Nato , com  Trump na presidência americana , que têm obrigado os europeus a reforçar o investimento na defesa, não as suas ameaças.

A NATO está enfraquecida e estaria à beira da morte se a América fosse dócil à vontade de  Trump, mas não o é. Como se viu, o Senado acaba de reafirmar o seu apoio às relações transatlânticas e à NATO.

 Contudo, a Europa não pode ficar refém de uma velha relação transatlântica que o Presidente dos Estados Unidos fragiliza, tem de aumentar a sua capacidade no domínio da segurança e da defesa, fora da NATO. Os Estados europeus, mesmo antes de atingirem os 2%, já gastam três vezes mais em defesa do que a Rússia e mais que a China. O que falta aos Estados europeus é unidade e autonomia estratégica. A recém-lançada PESCO (Cooperação Estruturada Permanente) não é suficiente. Em vez de uma vanguarda disposta a agir, trata-se, como alguém disse, de um comboio com 25 Estados membros e sem o Reino Unido, Estado indispensável no domínio militar. A força de intervenção militar, proposta pela França e de que o Reino Unido aceitou fazer parte, pode ser a iniciativa que faltava.

A Europa tem de diminuir a sua dependência dos Estados Unidos no domínio da segurança para poder proteger a rede de acordos multilaterais – que podem precisamente limitar o aventureirismo de Donald Trump. No domínio comercial, não pode cair na armadilha do bilateralismo que Trump quer impor, devendo manter-se firme na defesa da OMC. Para a defesa do multilateralismo tem aliados poderosos, como a China e a Índia, e nalgumas questões, como a defesa do acordo nuclear com o Irão, também a Rússia. Grave seria os Estados europeus pensarem que se podem entender, bilateralmente, com os Estados Unidos, à custa da China.

A Europa, como construção que deslegitima a política de potência entre os seus Estados membros, tem um interesse existencial num mundo regido por regras. Nunca foi tão necessário que a Europa se assuma como ator político e de segurança, mas também nunca foi tão difícil.

Antigo diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia

Escreve de acordo com o Acordo Ortográfico

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