Modric é idolatrado no mundo, mas na Croácia nem por isso

Impopularidade do futebolista no país natal relacionada com ligação a Zdravko Mamic, condenado em 2017 por corrupção, evasão fiscal e desvio de fundos, e que está a monte desde então

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A Croácia vai jogar a final do Mundial 2018, mas Modric está longe de reunir consenso entre os croatas Reuters/CHRISTIAN HARTMANN

Era uma vez um futebolista muito talentoso, venerado pelo seu virtuosismo, mas que no país natal estava longe de ser um paradigma de popularidade. E nem o contributo activo desse futebolista para que a sua selecção nacional conquistasse um lugar na final do Campeonato do Mundo seria suficiente para redimi-lo aos olhos dos seus compatriotas. Falamos da Croácia, de Luka Modric, e da ligação que o futebolista do Real Madrid tem há vários anos com Zdravko Mamic, um homem polémico, condenado pela justiça por peculato e evasão fiscal, e que contribuiu para Modric cair em desgraça entre os croatas.

Se Modric é o talento puro e o virtuoso, Mamic representa o exacto oposto. Desempenhou cargos no maior clube croata e também na federação nacional de futebol durante largos anos, embora com mais vantagem própria do que para as entidades que representava. E, mesmo com a presença inédita da Croácia na final do Mundial (defronta a França, em Moscovo, depois de amanhã), a mancha que Mamic representa na popularidade de Modric não será apagada.

A ligação entre os dois terá surgido em 2004, era Luka Modric uma jovem promessa do Dínamo Zagreb (chamavam-lhe “Lukica”, ou “pequeno Luka”) e Mamic integrante da direcção do clube. Ambos assinaram um contrato em que ficava acordado que, a troco de apoio financeiro imediato, “Lukica” partilharia quaisquer ganhos que tivesse ao longo da carreira com Mamic. Esta prática questionável era, aliás, recorrente na altura no Dínamo Zagreb, existindo vários outros casos (Dejan Lovren, Sime Vrsaljko, Mateo Kovacic e também o brasileiro naturalizado croata Eduardo da Silva), a maioria deles de jovens futebolistas representados pelo filho de Mamic, Mario.

Uma vez assinado esse compromisso, o Dínamo – ou melhor, Zdravko Mamic – tinha o maior interesse em transferir as jovens pérolas da formação para outros clubes. E a sorte grande saiu-lhe quando em 2008 o Tottenham avançou para a contratação de Modric, então com 22 anos. O médio criativo foi vendido por 21 milhões de euros, tornando-se na transferência mais cara do emblema croata. O acordo tinha (convenientemente) definido num anexo que o clube e o jogador dividiriam em partes iguais o montante, cabendo 10,5 milhões a cada – e Modric viu-se obrigado a ceder uma fatia considerável desse valor (cerca de 8,5 milhões, segundo a ESPN) a Mamic e à sua família.

Quando em 2015 a justiça começou a investigar a actuação de Mamic enquanto dirigente do Dínamo Zagreb, rapidamente chegou ao conflito de interesses latente e a acusações de corrupção, evasão fiscal (1,6 milhões de euros terão ficado por pagar) e desvio de fundos relacionados com irregularidades em transferências (15,6 milhões, segundo a acusação). Mamic foi condenado em 2017 a seis anos e meio de prisão, só que no dia em que foi lida a sentença já tinha saído da Croácia. Por ter também nacionalidade bósnia, atravessou a fronteira para sul e ficou protegido contra um eventual pedido de extradição. “Não sou cobarde, mas também não sou masoquista”, afirmou numa conferência de imprensa que realizou na sua nova morada.

“Durante anos Mamic esteve em posições-chave tanto no Dínamo como na federação, embora tenha sido forçado a abdicar durante o processo judicial. Ao longo do tempo, teceu uma teia de influência muito para lá do futebol. Tem amigos em lugares de destaque – políticos, juízes, donos de grupos de comunicação, até elementos da polícia”, escreveu o diário britânico The Guardian.

Para Modric, o problema foi ter alterado a sua versão dos factos. Num primeiro depoimento em tribunal, em 2016, o futebolista garantiu que o tal anexo que ditava a divisão em partes iguais dos 21 milhões da transferência para o Tottenham tinha sido assinado após o acordo, embora com data retroactiva. Porém, quando voltou ao tribunal no ano passado, Modric alterou a sua versão dos factos. Entrou em contradição, disse que a cláusula já existia e que não tinha dito nada do que estava registado, e acabou a repetir “Ne sjecam se” (Não me lembro).

A reviravolta no depoimento provocou a fúria dos adeptos croatas, que vêem em Mamic uma espécie de vilão do futebol nacional, e vêem o futebolista a protege-lo. Modric foi visado com inscrições no hotel em Zadar onde a sua família viveu quando teve de refugiar-se nos anos 1990: “Vais lembrar-te deste dia”. Houve quem quisesse tirar-lhe a braçadeira de capitão da selecção. E, ainda pior para o internacional croata, foi acusado de perjúrio e poderá incorrer numa pena de seis meses a cinco anos de prisão.

“Não tens nada mais inteligente para perguntar?”, respondeu Modric, visivelmente desconfortável, quando questionado a este respeito, antes do jogo da Croácia com a Nigéria, na fase de grupos do Mundial 2018. “Estamos no Campeonato do Mundo, não estamos a tratar de outras coisas”, acrescentou o futebolista croata. Porém, mesmo que depois de amanhã venha a erguer o troféu de campeão do mundo, haverá sempre uma nuvem negra a pairar sobre a sua cabeça.

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