Entre a “obsessão” e a verdade

O Conselho Científico da FDUL não poderia, sob pena de deliberação inconstitucional e ilegal, sequer valorar o facto de Domingos Farinho ser arguido.

Na edição do PÚBLICO de 10 de Julho, João Miguel Tavares (JMT) insurgiu-se contra a deliberação do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), no sentido de ser considerado como concluído com sucesso o período experimental de cinco anos de Domingos Farinho, na categoria de professor auxiliar, passando o respectivo contrato, por isso, a vigorar por tempo indeterminado. No essencial, entende o jornalista que a suspeita existente sobre aquele docente e que conduziu à sua constituição como arguido em processo criminal a decorrer, por alegadamente ter escrito ou “auxiliado” José Sócrates na sua dissertação de mestrado, deveria, por si só, conduzir o órgão estatutariamente competente a uma diversa deliberação, atentas “questões éticas”.

Cumpre, antes de mais, esclarecer que, como é evidente, não fui mandatado pela FDUL para escrever este texto, nem tenho qualquer interesse directo ou indirecto no assunto, excepto a circunstância de também ser professor auxiliar, em período experimental, numa Faculdade de Direito pública (para além de numa privada). O meu único intuito é fornecer um conjunto de informações que imporiam uma conclusão oposta à retirada por JMT.

O Estatuto da Carreira Docente Universitária prevê que os professores auxiliares sejam providos de entre os titulares do grau de doutor e, no que é, tanto quanto sei, caso único em qualquer profissão, a conversão do respectivo contrato em tempo indeterminado só opera ao fim de um larguíssimo período de 5 anos (artigos 22.º e 25.º). Tal como a expressão “período experimental” inculca, o órgão competente, no caso, o Conselho Científico, delibera – com direito a voto dos professores de categoria superior e baseados em pareceres elaborados por dois docentes, por regra um “da casa” e outro “de fora” – se o professor em causa demonstrou competências para o exercício da docência.

Competências essas que o referido estatuto (artigos 4.º e 5.º, n.º 3) divide em pedagógicas, científicas e de participação em órgãos de gestão. Acresce a transmissão de conhecimentos à comunidade. Para além do estatuto, cada universidade, ao abrigo da Lei de Autonomia Universitária, elabora regulamento geral para todas as suas unidades orgânicas, estabelecendo critérios mais precisos para avaliar aqueles parâmetros. Quanto à Universidade de Lisboa (UL), falamos do despacho reitoral n.º 15262/2015, de 7 de Dezembro, publicado em Diário da República, II série, n.º 248, de 21/12/2015 (regulamento relativo ao regime de vinculação e avaliação da actividade desenvolvida durante o período experimental por professores catedráticos, associados e auxiliares da Universidade de Lisboa). Vejam-se, em especial, os artigos 6.º e 7.º, sendo que, no n.º 1 deste último, lê-se: “[a] definição dos critérios e parâmetros de avaliação do período experimental para cada uma das vertentes da actividade docente deve constar dos regulamentos de vinculação por tempo indeterminado de cada escola e basear-se nos respectivos regulamentos de avaliação de desempenho dos docentes.”. A Faculdade de Direito – como as demais – adapta esse regulamento geral às especificidades que cada ente constituinte da UL apresenta, pois todos entendemos que um professor de Belas-Artes, p. ex., não pode ser avaliado da mesma forma que um docente de Direito.

Nada existe no regulamento da FDUL que viole o regulamento geral da UL e o docente em causa foi avaliado como tantos e tantos ao longo de anos. Basta passar os olhos pelo jornal oficial de hoje para encontrar alguns exemplos. Donde, a estupefacção de JMT não tem qualquer cabimento legal. Todavia, não é este o ponto do artigo escrito pelo jornalista. Entende – se bem o interpreto – que a condição de arguido nunca poderia conduzir à contratação sem termo da pessoa em causa. Isto é que é verdadeiramente grave. Tenho o JMT por um democrata, amante das regras básicas do Estado de Direito. Assim, não desconhece o princípio constitucional da presunção de inocência do art. 32.º, n.º 2, nem tão-pouco a não automaticidade de qualquer pena (que ainda nem sequer existe) ao nível de direitos civis, políticos e profissionais (art.

30.º, n.º 4, da Constituição). Mais ainda: certamente leu os regulamentos em causa e viu que a condição de arguido não é factor avaliável e nunca o poderia ser. Primeiro, o processo está em fase de inquérito e, mesmo que o docente venha a ser condenado com trânsito em julgado, terá de ser espoletado um procedimento no sentido de saber se o mesmo continua ou não a reunir condições para o exercício daquelas concretas funções públicas. Pretender condenar sem julgamento um qualquer cidadão é, para mim, motivo de repúdio e espanto, por ter o JMT em conta de uma pessoa que preza o Estado de Direito, volto a dizê-lo.

O Conselho Científico da FDUL não poderia, sob pena de deliberação inconstitucional e ilegal, sequer valorar o facto de o docente ser arguido. Do mesmo passo, exigir-se-ia mais precisão ao JMT, evitando “julgamentos em praça pública”. Em qualquer profissão, a objectividade e a não personalização são qualidades apreciáveis, da mesma forma que uma quase “obsessão” nunca foi boa conselheira.

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