Contrato da peritagem ao “apagão” de offshores envolto em secretismo

Inspector de Finanças guarda segredo sobre valor pago ao Instituto Superior Técnico por “colaboração” em auditoria polémica. Contrato não está publicado no portal Base, mas pedido de descativação de verbas aponta para 22.300 euros. Relatório da IGF recebeu críticas e não chegou a ser homologado.

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Vítor Braz, inspector-geral da IGF, foi consultor do Técnico de 1998 a 2005 Nuno Ferreira Santos

Quando, em Março de 2017, o inspector-geral da Inspecção-geral de Finanças (IGF), Vítor Braz, anunciou a “colaboração” do Instituto Superior Técnico (IST) na auditoria ao “apagão” de dados no fisco sobre 10.000 milhões de euros de transferências para offshores, o país estava longe de imaginar o que se passaria a seguir.

Às 19h28 do dia 23 de Junho, uma sexta-feira, Vítor Braz dá por concluídos os trabalhos da IGF: assina o relatório, elogia “a profundidade e rigor dos procedimentos” e manda enviar o documento para o Ministério das Finanças. Mas – surpresa –, ao ler as 118 páginas do relatório que lhe chega às mãos, o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que ordenara a auditoria, Fernando Rocha Andrade, detecta várias omissões. E ao final do dia 27 de Junho faz sair um despacho crítico: não esconde que ficavam “por esclarecer aspectos relevantes para a descoberta da verdade”, elenca ele próprio as dúvidas que persistiam e decide não homologar a auditoria.

Se o envolvimento de dois peritos do Técnico era já público e notório (até porque as conclusões da peritagem informática fazem parte do relatório da IGF), os termos financeiros em que ocorreu continuam envoltos em secretismo, ainda que se saiba que as duas instituições têm um protocolo (é público) e que foi ao abrigo dele que tudo aconteceu.

O PÚBLICO apurou que a “colaboração” anunciada por Vítor Braz se tratou, afinal, de uma prestação de serviços cujo contrato não está publicado no portal Base, o site criado para dar transparência à contratação pública. Até hoje, o inspector-geral não quis esclarecer quanto custou esta peritagem pedida ao Técnico, instituição de ensino da qual Vítor Braz foi consultor de 1998 a 2005 nos domínios das finanças públicas e da auditoria interna.

Nem Vítor Braz, nem o presidente do Técnico esclareceram, quando questionados pelo PÚBLICO, qual foi o valor do contrato. O PÚBLICO confirmou, no entanto, que em 2017 a IGF submeteu um pedido de descativação de verbas do seu orçamento de actividades e justificou uma fatia desse bolo com a necessidade de avançar com o pagamento ao Técnico. Um parecer interno elaborado pela Direcção-Geral do Orçamento (DGO), a que o PÚBLICO teve acesso, confirma que a IGF pediu um reforço de 22.300 euros para a rubrica dos “serviços de natureza informática-outros” com um objectivo: a IGF, lê-se no parecer da DGO, justificou esse reforço “para início dos procedimentos da contratação com o Instituto Superior Técnico, no âmbito da auditoria ao sistema de informação e controlo das declarações transfronteiriças”.

Sem explicações

Vítor Braz, inspector-geral da IGF desde o início de 2015, esteve no Parlamento na tarde de 4 de Julho de 2017 a falar sobre a auditoria. E aí refere o recurso aos peritos, eles próprios ali presentes na audição. Um ano depois, questionado pelo PÚBLICO sobre o valor do contrato e por que razão o documento não está publicado no Base, não respondeu.

Se na IGF impera o silêncio, do lado do Técnico o presidente da instituição, Arlindo Oliveira, limitou-se a esclarecer que “a colaboração entre o IST e a IGF tem sido executada como uma prestação de serviços, no âmbito do protocolo existente. O valor é definido para cada tarefa de acordo com o trabalho a desenvolver, de acordo com as regras gerais da contratação pública”. Mas nunca quis confirmar o montante pago, apesar de o PÚBLICO ter insistido mais quatro vezes ao longo das últimas semanas.

Do gabinete de comunicação do Técnico, recebeu-se a 21 de Junho a indicação de que Arlindo Oliveira não tinha o valor presente, mas que o contrato estaria disponível no Portal Base. Acontece que, aí, apenas está publicada uma “contratação de serviços de peritagem informática”, decidida por ajuste directo, no dia 20 de Outubro. Mas esse contrato, no valor de 7035 euros, não corresponderá à peritagem do “apagão”, já que os trabalhos da primeira auditoria ocorreram no primeiro semestre (duraram três meses, de 8 de Março a 9 de Junho) e o único contrato publicado remete para uma peritagem executada em Outubro e Novembro, durante 30 dias (o contrato foi celebrado a 20 de Outubro e terminou a 17 de Novembro).

Confrontado com esse facto, e questionado novamente sobre qual foi o valor do contrato do “apagão”, Arlindo Oliveira não mais esclareceu o assunto cabalmente. O PÚBLICO enviou novos pedidos de esclarecimento e obteve a seguinte resposta no dia 4 de Julho por parte do gabinete de comunicação do Técnico: “O IST nada tem a acrescentar às respostas já enviadas anteriormente”.

As conclusões

O relatório da IGF foi enviado para o Ministério Público, onde o caso do “apagão” está a ser investigado por inspectores da Polícia Judiciária e procuradoras do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa. Segundo a IGF, “uma combinação complexa de factores tecnológicos conduziu ao processamento parcial” das declarações enviadas pelos bancos para indicar as transferências para offshores de 2011 a 2014, deixando ocultos da base central de dados informação sobre 10.000 milhões de euros. Perto de 8000 milhões de euros correspondem a fluxos de dinheiro enviados a partir de contas sediadas no BES (em 2012, 2013 e 2014).

A partir de 2013 houve uma alteração do comportamento da aplicação informática. Os peritos do IST consideraram “extremamente improvável” que a alteração “tenha resultado de uma intervenção humana deliberada”. No Parlamento, na audição de Vítor Braz em Julho de 2017, quando a deputada do BE Mariana Mortágua perguntou se a configuração podia ser alterada manualmente, um dos inspectores que acompanhava Vítor Braz, José Oliveira respondeu: “É, é possível manualmente”.

Ainda não há uma explicação inequívoca para o erro. Rocha Andrade deixou escrito que, “da descrição dos meios de investigação utilizados e dos elementos recolhidos” pela IGF “não foi confirmado se e quem poderá ter alterado” a parametrização informática. E deixou ainda que “não foi encontrada explicação para a singularidade estatística de este ‘erro’ afectar especialmente algumas instituições e manifestar-se de forma diversa ao longo de vários períodos temporais”.

A investigação está agora nas mãos do DIAP de Lisboa e da PJ. Até 20 de Junho não havia arguidos constituídos.

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