David Byrne e um espectáculo notável com cabeça, tronco e membros

O concerto com que abriu o EDP Cool Jazz em Cascais foi um momento cénico único. Mas não só. Foi também uma inundação de felicidade como é raro experimentar-se num espectáculo ao vivo.

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Conjunto musical, guitarra
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David Byrne, David Byrne Ingressos Dallas, Concerto
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David Byrne
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No espaço de poucas semanas, Portugal pode assistir a três concertos memoráveis: Nick Cave no festival Nos Primavera Sound do Porto, os LCD Soundsystem no Coliseu de Lisboa e, esta quarta-feira, David Byrne no hipódromo Manuel Possolo de Cascais, na abertura do EDP Cool Jazz, perante uma multidão (número não oficial) de cerca de oito mil pessoas.

Foram momentos diversos, que têm em comum o facto de terem sido proporcionados por gente na meia-idade, que passou por muitas provas e que continua a inquietar-se como nos primeiros dias. Poder-se-á argumentar que foram grandes experiências musicais e ponto final. O que já não é pouco. Mas a verdade é que foram bem mais do que isso.

Constituíram, ainda que indirectamente, inspiradoras lições de vida. Em todos eles existiu uma dimensão de catarse. Como se, de formas diferentes, nos viessem dizer que é possível continuar a acreditar mesmo quando tudo parece sombrio, seja individual ou colectivamente. Nenhum deles teve a tentação de nos ditar um caminho. Mas cada um transmitiu que é possível resistir, imaginar outras formas de estar e celebrar o existir em comunidade, o que torna tudo mais fácil e viável.

David Byrne, 65 anos, foi isso. Alguém que continua a pôr-se em causa, como indivíduo, cidadão activo e artista, não temendo a imperfeição mas sem prescindir da exigência e do rigor, arriscando num terreno em que pensamento e fisicalidade andam a par. Aliás é curioso que, durante parte da sua carreira, tenha sido catalogado como um músico demasiado cerebral.

Ao longo do concerto ele dançou e riu com evidente deleite. Aliás não fez outra coisa. Talvez tenha sido disso. Ele sempre percebeu que cabeça, tronco e membros não se podem dissociar. Daí que o ritual tenha começado com ele sentado à mesa, pegando na réplica de um cérebro para a interpretação de Here, do álbum deste ano American Utopia.

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Logo aí se percebeu ao que vinha. O cenário é vazio, cinzento, desnudado, sem a parafernália de fios, cabos, estrados ou amplificadores. É como um palco de teatro ou dança. E é a isso que iremos assistir durante duas horas. Uma fantástica performance alimentada a teatralidade e coreografias, mas também pela tecnologia que permite a aparente simplicidade e por 12 músicos vestidos de igual, transportando percussões, baixo, guitarra ou teclados, e que não param um só segundo, todos de pé, descalços, em corrupio, com Byrne a ser mais um, num ritual horizontal, onde se divertem à grande e o resultado é o contágio absoluto da assistência.

Para quem andasse informado sobre a nova digressão, o dispositivo não constituiu uma surpresa. Em entrevista ao Ípsilon, em Abril, ele confessava que se havia inspirado na dança contemporânea, nas escolas de samba e noutras formas colectivas de expor musica para tentar voltar a imaginar como é que um concerto pop-rock pode ser encenado. “É um espectáculo que é um convite para festejarmos em conjunto a vida, o amor, as coisas boas que as há tantas, apesar de por vezes não as conseguirmos vislumbrar no meio de tanto nevoeiro”, dizia-nos então. E foi mesmo isso. Porque a realidade é esta: mesmo quem não se espantou com a montagem ficou certamente tocado pela honestidade que emanou dela.

Só é um paradoxo para quem não conhece o seu percurso, mas talvez essa autenticidade nunca tivesse sido conduzida a um extremo tão celebrativo como nesta digressão. Nitidamente sente-se prazer em palco. Dança-se sem parar. E ao segundo tema, Lazy, isso já lá está. Ao longo do concerto o alinhamento contemplará canções do novo álbum, temas em colaboração (St. Vincent, Fatboy Slim), versões (Janelle Monáe) e um muito generoso conjunto de canções dos Talking Heads. E o que é mais surpreendente: todas as canções são alvo de representações e rearranjos, mas nenhuma perde a essência, e até aquelas que parecem menores – como a festiva Toe jam [Brighton port authority song] – acabam por ganhar um novo alento.

Não é fácil destacar momentos empolgantes, porque foram-no quase todos. Houve o velho e tão actual I zimbra, com Byrne à guitarra, e o irresistível sentir funky colectivo. Ouviu-se Everybody’s from my house, I dance like this, Every day is a miracle ou Doing the right thing, do novo álbum, totalmente integradas no conjunto do alinhamento. This must be the place, Born under punches (The heads goes on) ou Blind, com um magnífico jogo de sombras em fundo, todas dos Talking Heads, foram simplesmente excelentes, mas ainda assim quando se fizeram ouvir Once in a lifetime ou Burning down the house a casa não ardeu, mas veio literalmente abaixo. Ainda dos Talking Heads, no primeiro encore, surgiu The great curve, numa interpretação desvairada, com Byrne, primeiro, e depois a sua guitarrista, a proporcionarem solos extasiantes.

O final, no segundo encore, deu-se com a emocionante interpretação de Hell you Talmbout (original de Janelle Monáe), com os músicos a repetirem nomes de afro-americanos que foram alvo de violência policial nos últimos anos. A meio do concerto, os elegantes fatos que todos envergavam já estavam encharcados em suor, num espectáculo único com muito funk, diversão, algum drama e abertamente político, com Byrne a encorajar toda a gente a votar “em todas as eleições que puder”, porque o mundo está recheado de impasses políticos e socioculturais e é preciso ter uma atitude cívica empenhada e vigilante.

A meio do espectáculo, antes de apresentar a trupe de músicos que o acompanha, contou que um amigo o foi visitar nos bastidores depois de assistir a um concerto e o interrogou, desconfiado, se aquilo que acabara de ver não havia sido um simulacro, de tal forma parecia inverosímil aquela orquestra com instrumentos amarrados à cintura. “Que não”, respondeu, “os músicos tocam tudo o que se ouve”. Não só tocam como cantam todos e memorizam passos de dança, sem que o espectador saiba às tantas onde concentrar a atenção, deixando-se envolver no cerimonial.

Na entrevista que lhe fizemos em Abril, dizia-nos que se multiplicam os sinais desencorajadores no mundo de hoje, mas que ao mesmo tempo continuam a ser criadas coisas que merecem ser enaltecidas e que há pessoas que fazem sentido e são encorajadoras. David Byrne é certamente uma dessas pessoas.

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