Walk & Talk: um festival disposto a esperar para ver no que vai dar

A oitava edição do festival multidisciplinar de São Miguel, nos Açores, prolonga-se até dia 14. Ou, no caso das obras de arte pública que vem comissariando, muito para lá disso.

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As Black Cells de Diogo Evangelista foram concebidas expressamente para esta exposição MARIANA LOPES
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Living Metals, de Joana Escoval MARIANA LOPES
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Em Revelations, Bruno Pacheco desenhou várias vezes a mesma nave espacial MARIANA LOPES

Quando se entra no Solmar, um centro comercial em Ponta Delgada, dá-se de caras com uma exposição dos trabalhos finais dos alunos de um curso local de artes plásticas. Entre duas cadeiras de massagens e nas redondezas de um cinema desactivado, estão expostos desenhos de Robert De Niro e Cameron Diaz. Ao lado, vários painéis de cartão preto pendurados no tecto vão anunciando o festival Walk & Talk e ditando o caminho até ao elevador. No quarto piso do prédio, parte de um empreendimento com uma torre de 137 metros que outrora foi um dos edifícios mais altos de Portugal, já funcionou um ginásio e um armazém. Mas enquanto dura a oitava edição do festival, e pelo menos no mês a seguir (visitas aos sábados, mediante reserva), é lá que mora a exposição Untitled (How Does it  Feel).

Com curadoria de João Mourão e Luís Silva, a exposição vai buscar o nome ao single homónimo de D’Angelo que saiu no ano 2000, em cujo teledisco o artista de r&b se apresentava em tronco nu, com um corpo tonificado e definido que foi complicado manter nos anos que se seguiram (a sua objectificação levou a que o cantor praticamente se retirasse da vida pública durante mais de uma década).

Ao PÚBLICO, Luís Silva explica que a exposição partiu do espaço, pelo qual os dois curadores ficaram “obcecados”, e do teledisco, que acabou por desaparecer da equação e só deixar o nome, para explorar “o olhar, a ilusão e o desejo dos objectos”. Os dois definem as obras de arte ali apresentadas, que incluem instalações, fotografias, desenhos e vídeo – está lá, por exemplo, O Peixe, do brasileiro Jonathas de Andrade, que se estreou na Bienal de São Paulo e venceu há um ano o prémio de melhor documentário no Curtas Vila de Conde –, como “máquinas de produzir desejo”.

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Luís Lázaro Matos ocupou o terraço do Solmar MARIANA LOPES

Há três obras feitas de propósito para a exposição. Na piscina inacabada do terraço, Luís Lázaro Matos – que tem outras peças dentro do edifício – desenhou Uma Piscina de Lava, um mural com dinossauros e surfistas (e escreveu “eu sou um menino da linha” na linha). Para Living Metals, Joana Escoval juntou pedra vulcânica e metal em vários objectos espalhados ao longo do espaço, que mantém a decadência em que a organização do festival o encontrou. Já as Black Cells, de Diogo Evangelista, que também tem um vídeo exposto, são candeeiros de papel pintados de preto no tecto, pensados como buracos negros numa sala com vista para Ponta Delgada que inclui também uma fotografia da série Shell (mineral eroticism), de André Romão e Revelations, vários desenhos da mesma nave espacial de Bruno Pacheco.

Cerveja e palavras

Untitled (How Does it  Feel) é uma das seis exposições do festival multidisciplinar açoriano cuja oitava edição dura até 14 de Julho, mas terá repercussões ao longo do resto do ano, seja nas actividades desenvolvidas com os vários artistas que estão residência, seja nas obras que se prolongam no tempo – é fácil ver, à volta da ilha de São Miguel, obras de edições anteriores, em melhor ou pior estado de conservação (as que não estão viradas para o mar mantêm mais facilmente as cores e os traços sem precisarem de ser retocadas).

Outra das exposições do programa deste ano é El Olvido, o resultado da residência que a guatemalca Maya Saravia fez na edição anterior do festival. A instalação tenta recriar o bar homónimo da Cidade da Guatemala no piso de baixo do Instituto Cultural de Ponta Delgada, uma instituição no activo há 75 anos, com história por todos os recantos: em cima de uma mesa no segundo andar está um busto de Antero de Quental esculpido por Canto da Maia que outrora pertenceu a António Ferro. Há Minis num alguidar, mesas que vieram de tascas locais, e, nas paredes, quadros com frases – uma delas tirada de You don’t know me, a canção com que Caetano Veloso abriu o álbum Transa, em 1972. Num televisor, imagens de guerra e da Cimeira das Lajes, em 2003, com os sorridentes Tony Blair, George W. Bush e José Maria Aznar a decidirem a invasão militar do Iraque.

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A guatemalteca Maya Saravia recriou numa vetusta instituição de Ponta Delgada um bar da capital do seu país MARIANA LOPES

Como já vem sendo hábito, esta edição do festival inclui também um programa musical (o norte-americano Elliot Sheedy, que também faz vídeo, dará um concerto na próxima sexta-feira, enquanto os Voyagers farão um set DJ no dia de encerramento) e performances (Lígia Soares, Rita Vilhena e Diogo Alvim, na quarta-feira; Cristóvão Ferreira, na quinta; Filipe Pereira e Teresa Silva, na sexta). Já houve teatro e também residências de artistas de todo o tipo, cujo trabalho poderá ou não ser visto ainda este ano.

É um festival que tem arte em centros comerciais. Mas também que traz ao arquipélago acontecimentos como Cuore, o espectáculo da coreógrafa e bailarina Lígia Soares apresentado no domingo à noite no Pavilhão Walk & Talk, a estrutura de madeira projectada pelos Mezzo Atelier que foi inaugurada este ano. Na actuação, o público ficou em cima do palco, com os três bailarinos a cantarem, e a pedirem para a audiência cantar, até à exaustão, as seguintes palavras: “Apesar de ti eu amo-te, gosto de ti por enquanto, o meu coração é um órgão, o teu também, te garanto”.

Experimentar e falhar

O Walk & Talk é um festival com espaço para a experimentação. Os artistas são convidados e a partir daí fazem o que querem, sem interferência da organização. Aos jornalistas, enquanto jantava no sábado à noite, Jesse James, um dos fundadores e directores artísticos do festival, que este ano teve um orçamento de 170 mil euros, realçou a importância do falhanço: “Se correr bem, óptimo para todos, se correr mal, olha, faz parte”. “Falha-se sempre”, rematou a também directora Sofia Carolina Botelho.

Esse carácter de “é o que for” está patente nas residências. Há cinco anos que Miguel Flor está à frente das residências de design e artesanato, cujo resultado será exposto durante um dia só no Teatro Micaelense. Ao PÚBLICO, o curador conta que convida designers nacionais e internacionais – desde o ano passado, há uma abertura redobrada aos Estados Unidos – para colaborarem com artesãos locais que trabalham em madeira, tapeçaria, vime e azulejos, por exemplo. E, se antes eles vinham com ideias feitas sobre o que queriam fazer, agora deixa-os irem buscar inspiração no contacto com a ilha.

Foi o caso do norte-americano Kurt Woerpel, que quando chegou viu gárgulas numa igreja (e reparou que eram figuras mais humanas do que aquelas a que estava habituado) e pássaros. Então desenhou gárgulas em pratos, pássaros num conjunto de pequeno-almoço e uma mistura dos dois num vaso, conta enquanto mostra o resultado daquilo em que está a trabalhar na ARRISCA, um dos dois espaços em que a RARA, como se chama este programa de residências, trabalha. Tudo com a ajuda de João Amaral, que pratica este ofício há mais de 30 anos.

Os seus compatriotas Caroline David e Tim Lahan preferiram os azulejos: ela, mais dada ao trabalho digital, representa as cores das flores, com a influência mexicana do seu estado de origem, o Texas, enquanto ele, que também tem trabalhos em madeira, se foca na comercialidade do trabalho – as peças criadas nestas residências são para vender ao público –, com baleias, ananases e palmeiras.

O outro espaço onde se trabalha em madeira, tapeçaria e vime é a Quinta do Priôlo, onde, com animais e crianças em férias a brincarem à volta, o duo UVA está a trabalhar em três peças, uma delas uma tapeçaria que parte de uma fotografia área do Ilhéu de Vila Franca.

É justamente em frente a esse ilhéu que o colectivo de construção de origem italiana Camposaz está a trabalhar, com cal e pedra e as mãos sempre na massa, em estruturas de madeira que darão uma escala mais humana à paisagem. A obra há-de integrar o Circuito de Arte de 2018, que tem o título genérico Assembling a Moving Island e a curadoria de Dani Admiss.

O circuito inclui também uma instalação que ainda não está pronta e ainda não tem destino decidido, a cargo da alemã e iraquiana Nora Al-Badri e do também alemão Nikolai Nelles. Este último, ainda em processo de trabalho, detalhou ao PÚBLICO o que procura fazer, partindo de medições da frequência, da altura e da força das ondas do mar recolhidas ao longo dos últimos dez anos. A peça sonora que tem em vista será um statement em favor do activismo e contra a hegemonia branca e masculina da ciência e do conhecimento em geral.

É esperar para ver no que vai dar.

O PÚBLICO viajou a convite do Walk & Talk.

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