Criador do “Swansealona” faz Bélgica sonhar com o título

Com La Roja fora do Mundial, Roberto Martínez é a grande estrela dos espanhóis ainda na Rússia. Já fez história na prova e está só a uma França da final.

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Reuters/SERGEI KARPUKHIN

O nome de Guy Thys (1922-2003) é capaz de dizer pouco a muita gente fora do país onde nasceu, morreu e fez toda a sua carreira profissional. Mas foi o seleccionador mais bem-sucedido da história da Bélgica. Até agora. Esteve à frente dos “diabos vermelhos” durante 15 anos (1975-1990) e levou-os ao quarto lugar no Mundial do México, em 1986.

Na meia-final, no Estádio Azteca, a sua equipa — que incluía jogadores como Jean-Marie Pfaff, Enzo Scifo, Jan Ceulemans ou Franky Vercauteren — foi vítima de uma força sobrenatural testemunhada por 115 mil espectadores. O fenómeno tinha um nome: Diego Armando Maradona. Marcou os dois golos do encontro e seguiu caminho para o título como se nada fosse.

O espanhol Roberto Martínez não precisou de tanto tempo para alcançar esta marca e bater à porta do pódio. Chegou há dois anos (Agosto de 2016), depois de ter sido dispensado pelo Everton, de Inglaterra. Juntou aquela que será a mais talentosa geração belga de futebolistas e transformou-a numa das melhores equipas da actualidade. Num caminho que começou por ser algo espinhoso.

Tudo começou no rescaldo do trauma do Euro 2016, onde a prestação dos belgas, que se apresentavam com ambições e acabaram por esbarrar no estreante País de Gales, nos quartos-de-final, ditara o fim da era Marc Wilmots na selecção. O país não ficou eufórico quando ouviu o nome do seu sucessor. Um relativo desconhecido, com passagens por equipas de segundo e terceiro planos na Premier League inglesa.

Menos impressionados ficaram os belgas quando perdeu logo o jogo de estreia, um particular com a Espanha, em Setembro desse ano. “Foram derrotados por 2-0 e as críticas à decisão da federação foram muitas”, recordou ao PÚBLICO um jornalista belga, no Media Center do magnífico Estádio Krestovsky. É aqui, em São Petersburgo, que a Bélgica irá defrontar amanhã a poderosa França, para decidir o acesso à final.

“As coisas melhoraram depois, com os resultados, mas a desconfiança permaneceu e voltou a aumentar de tom quando ele decidiu não chamar Radja Nainggolan [médio de 30 anos do Inter de Milão] para a Rússia”. Martínez não fez caso e defendeu-se com a quantidade e qualidade dos jogadores belgas ao dispor.

Nunca perdeu o entusiasmo e a confiança. Nem quando ouviu críticas de uma das suas principais estrelas, Kevin De Bruyne, após um empate com sabor a derrota também numa partida de preparação com o México (3-3), já em Novembro de 2017. O talentoso médio do Manchester City queixou-se do sistema excessivamente defensivo utilizado pelo espanhol, numa formação com tanta qualidade individual ofensiva.

Em resposta, Martínez elogiou (sem ironias) o jogador pela sua genuína e honesta preocupação: “Kevin mostrou o quanto se importa. Há aqui [na selecção] uma cultura de tentar entender as coisas do ponto de vista táctico, que eu aprecio.” Mas lá foi justificando a necessidade de a equipa se preparar para abordar uma competição como o Mundial, onde teria de sofrer para enfrentar determinados adversários.

Carreira discreta

O último jogo com o Brasil provou que estava certo. “Este grupo não tem uma geração anterior que tenha vencido um grande torneio, que lhe sirva de exemplo. Eles estão a ir para o desconhecido e precisam de estar muito focados”, avisou antes da partida para a Rússia. Por causa disso mesmo convenceu a antiga glória do futebol francês Thierry Henry a acompanhá-lo na equipa técnica.

“Quando aceitei o cargo, quis trazer experiência internacional”, justificou, referindo-se aos títulos conquistados pelo ex-avançado da França, campeão do mundo em 1998 e europeu em 2000, numa selecção transformadora de mentalidades, que venceu décadas de decepções.

Já Roberto Martínez exibe, aos 44 anos, um palmarés ainda pouco impressionante como treinador e até medíocre enquanto jogador, como o próprio reconhece meio a brincar. “O ponto mais alto da minha carreira [como médio defensivo] foi ter entrado como substituto numa partida do Saragoça [clube no qual alinhou até partir definitivamente para o futebol inglês, aos 21 anos].”

Pendurou as chuteiras aos 33, depois de ter passado 12 temporadas nas divisões secundárias britânicas, para abraçar a carreira técnica no Swansea, depois de anos a jogar em modestos clubes britânicos, praticamente sempre como suplente não utilizado.

Escola de Cruyff e Guardiola

Catalão, nascido na pequena cidade espanhola de Balaguer, passou a adolescência a admirar a forma de jogar do Barcelona. Tinha 15 anos quando Johan Cruyff assumiu o comando técnico e ficou hipnotizado com aquele futebol de posse que encantou o mundo. Mal sabia que em pouco tempo se tornaria íntimo do holandês.

Quando em 1995 trocou Espanha por Inglaterra, para representar o Wigan, sediado nos arredores de Manchester, dividiu um apartamento com Jordi Cruyff, filho do seu ídolo, que estava ao serviço dos “red devils”. Conheceram-se enquanto juvenis do Saragoça (Martínez) e do Barcelona (Jordi) e reencontraram-se num restaurante em Manchester. São amigos inseparáveis, padrinhos de casamento e dos filhos um do outro.

Já depois de ter abraçado uma carreira de treinador, e quando estava a completar quatro temporadas no Wigan, Johan indicou-o para treinar o Ajax da Holanda, dois anos antes de morrer. Nessa altura, Martínez era uma revelação na Premier League, tendo evitado três vezes a despromoção e atingido o ponto mais alto da sua carreira até então ao conquistar a Taça de Inglaterra, o primeiro título da história do modesto Wigan, batendo na final de Wembley o Manchester City. Estávamos em 2013.

Acabaria por ser o Everton a antecipar-se ao Ajax. Em Liverpool, foi render David Moyes, de malas aviadas para suceder ao mítico sir Alex Ferguson no Manchester United. Na primeira temporada alcançou o recorde de pontos da equipa no primeiro escalão e o quinto lugar na prova.

Lapidar Lukaku

No Everton valorizou como nunca a posse de bola, inspirado em Pep Guardiola, outra das suas grandes referências, que encontrava muitas vezes nas visitas a Barcelona. Nunca escondeu a admiração pelo actual treinador do Manchester City: “Guardiola é impressionante, sabe bem o que quer e trabalha duramente para o conseguir. É um exemplo.”

E Guardiola até lhe deixou uma mensagem para este Mundial: “A Bélgica tem talento em todos os sectores”, salientou, sugerindo-lhe que jogasse sempre com Eden Hazard e De Bruyne juntos, pois acreditava que eram compatíveis em campo. Martínez seguiu o conselho à risca.

Nas últimas duas partidas, no segundo tempo da reviravolta frente ao Japão (3-2) e no histórico triunfo sobre o Brasil (2-1), até deu mais liberdade ao médio do City para subir no terreno para zonas mais próximas do avançado do Chelsea, chamando Fellaini para zonas mais recuadas.

O Everton prescindiu de Martínez depois de uma temporada com maus resultados e poucas semanas depois surgiu o convite da Bélgica. Uma das razões fundamentais para convencer os dirigentes federativos foi a forma como o espanhol fez desabrochar o imperial Romelu Lukaku no emblema de Liverpool.

O possante atacante que chegou à Premier League pela mão do Chelsea, acabou por andar emprestado até Martínez o lapidar em Liverpool. Na selecção, a actual jóia da coroa de José Mourinho no Manchester United soma 24 golos desde que o espanhol chegou. Ao todo, conta 40 que fazem dele já o melhor marcador de sempre.

Depois de 24 partidas sem perder, com Mundial incluído, e a uma França da final de Moscovo, Roberto Martínez, formado em Fisioterapia e com um diploma em Gestão, está a ser descoberto pelos espanhóis. São cada vez mais as vozes do seu país a pedirem para que seja o sucessor de Lopetegui e Hierro. Ele, que até é espanholista, ao contrário do independentista Guardiola.

Jordi Cruyff não esconde a admiração pelo amigo, como confessou no jornal Marca num recente artigo de opinião. Conta como na estreia como treinador, em 2003, convenceu o Swansea — que competia na terceira divisão — a adoptar um futebol de posse. Uma ousadia.

Não foi fácil convencer os adeptos, mais habituados a uma cultura galesa desportiva muito inspirada no rugby. Mas lá se renderam à causa do espanhol quando subiram de escalão. Orgulhosos, baptizaram a equipa: “Swansealona”.

Depois disto, convencer os talentosos jogadores belgas que podem mesmo ser campeões mundiais “és pan comido!” Ou na gíria portuguesa: “É canja!”

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